POLÍTICA DISCORDANCIA
E CONVIVENCIA
Quando Juscelino Kubitsheck morreu em agosto de 75, Carlos Lacerda sobre
ele escreveu um artigo que deveria
ser leitura obrigatória para todos os
políticos. Lacerda foi o mais virulento
dos adversários do presidente JK.
Tribuno notável, homem culto e espirituoso, ele liderou, com a fúria desatada
de um intolerante, a mais agressiva ala da direita brasileira. Este grupamento, quase em estado permanente de sublevação, reunia
militares, políticos, alguns até
que se definiam como liberais, setores influentes da imprensa, e uma parte considerável
da classe média . O ¨lacerdismo ¨ ganhou corpo principalmente no antigo Distrito Federal, a cidade do Rio de
Janeiro, que viria, com a criação de Brasília, a transformar-se no
estado da Guanabara, do qual Lacerda foi o primeiro governador eleito. Lacerdismo e golpismo andavam de mãos dadas, e a odiosidade e a
intolerância eram o seu deplorável traço de união.
Quando Juscelino, governador de Minas, consolidava sua candidatura à presidência da República, formando a aliança imbatível do PSD rural com
o PTB urbano e as esquerdas, Lacerda ameaçou, sinalizando aos quarteis: ¨
Juscelino não pode ser candidato, se candidato não pode ser eleito, se eleito
não pode tomar posse, se tomar posse terá de ser deposto¨.
Assim, traçou o roteiro das quarteladas que
ameaçaram a eleição, depois a posse, em seguida o mandato, do maior dos estadistas brasileiros, que cumpriu a promessa de fazer o Brasil
avançar 50 anos no seu mandato de apenas 5. Juscelino, magnânimo e contemporizador, concedeu anistia
aos militares que contra ele se rebelaram, e superando todos os obstáculos, deu ao país um
período criativo, esperançoso, marcado pela liberdade de expressão e transito
de ideias inovadoras. Consumado o golpe de 64, Lacerda empenhou-se em demolir
Juscelino, então senador da República, e que seria o seu maior oponente, se
fossem, como estavam programadas,
realizadas as eleições presidenciais em 65. Juscelino foi cassado, e as trevas
da intolerância se espalharam pelo país.
Depois, Lacerda voltou-se contra o
monstro que ajudara a criar, reviu suas posições políticas, acenou aos
adversários, entendendo que da união das lideranças civis dependia a
sobrevivência do regime democrático. Surgiu a Frente Ampla, e nela estavam
juntos os figadais inimigos, Lacerda, JK, Jango. O golpe dentro do golpe de
dezembro de 68, fez sumir os vestígios
de respeito às instituições democráticas. Lacerda e Juscelino, a partir da
estratégica convivência política, criaram uma relação de respeito mútuo, e
talvez até de amizade pessoal. Eram homens cultos, capazes de manter um diálogo
em alto nível sobre o Brasil, sobre o mundo, e descobriram identidades antes impossíveis. Presos, perseguidos, humilhados, se fizeram também solidários na adversidade.
Lacerda, na homenagem póstuma a
JK, exaltou o espirito conciliador do
ex-inimigo, e disse que era difícil
combate-lo, pois a cada golpe ele respondia com um gesto de tolerância. Exaltando o
homem a quem tanto insultara, fez
uma síntese do que vem a ser a prática da boa política, daquela que se faz
tendo em vista o interesse público : ¨Não é possível conviver sem discordar,
mas, até para discordar é preciso conviver ¨. Escreveu o redimido Lacerda.
Pouco tempo depois, Lacerda também morreria, dizem que moído
pelos remorsos, pelas frustrações de não ter podido reconstruir a democracia e, com ela, restabelecer a civilidade, a elegância no
exercício do poder, que o seu antigo adversário, depois amigo e
aliado, Juscelino, soubera manter nos 5 anos em que fora presidente.
Lacerda, que fora o mais
radical, o mais virulento, o mais intolerante
dos políticos brasileiros,
condenado ao ostracismo pela prepotência de um regime que pretendia
legitimar-se pela força, descobriu,
tardiamente embora, que a política deve ser sempre a arte de fazer com que os
dissensos não eliminem a convivência.
Se lembramos desses episódios que marcaram um período da
historia brasileira, é, tão somente, pelo interesse quase didático de valorizar a
tolerância, de exaltar valores
inseparáveis do jogo democrático, que se corporificam, basicamente, no respeito
ao adversário, no comedimento indispensável, mesmo nos mais acirrados instantes de
divergências, quando, desde que não haja odiosidades, nem ambições
colocadas acima do interesse público, os protagonistas da cena política sempre poderão preservar o
indispensável espaço para o entendimento e a convivência.