NO RASO DA CATARINA 46
GRAUS (2, final).
Uma semana após as
chuvas, torrenciais,a caatinga no Raso da Catarina já estava verde. Breve, as
juremas os mandacarus, as catingueiras, estarão todos exibindo as suas flores.
Naquele inusitado bioma onde a dureza do clima exige uma forma excepcional de
adaptação, existem árvores que florescem e espalham suas sementes mesmo durante
a secura dos verões,e outras que dependem das chuvas para florescer.
Os riachos intermitentes
que correram caudalosos após a chuvarada, três dias depois já haviam escorridoe
tinham apenas, aqui e ali, algumas poças d’água. Essa é uma cena que se repete
em todo o sertão nordestino. Assim, tão bem constatada essa evidencia, ressurge
o velho debate que se perde no tempo sobre a imprescindível estratégia de
conservação da água. Em maior escala isso só se faz através da construção dos
grandes açudes, do barramento de rios. Em todo o Raso da Catarina, e nos seus
arredores existe apenas um único açude, ele está no exato local do heroico
arraial de Canudos, onde hoje se planta muita banana. É o assoreado Cocorobó,
que resulta do barramento do minguante Vasa Barris. Ao norte corre o São Francisco,mas, nas
pequenas comunidades espalhadas pela vastidão semi deserta, a água continuava
sendo uma rara preciosidade.
Reza a tradição
oral desde tempos idos,que aquelas terras ressequidasconfrontando nem sempre
pacificamente os vastíssimos domínios do Barão de Jeremoabo, pertenciam a uma
mulher, uma resoluta virago sertaneja que juntava dobrões nos seus baús
resultantes do comércio de um gado mirradinho, que as secas não dizimavam. Era
o rebanho dos “pé-duro”. Muitos se embrenhavam pela extensão da caatinga, num
tempo em que não havia cercas, e lá se iam ficando, num processo de simbiose
com o meio que os fez esquecer completamente de água que não fosse aquela
retirada com cascos e dentes das macambiras, mandacarus e raízes dos
umbuzeiros. No Raso,que significa planura ampla,ligeiramente côncava, espécie
de bacia rasa, os vaqueiros encourados que procuravam as rezestresmalhadas
durante dias e até semanas, nem levavam água,procediam da mesma forma que os “pé-duro”.
E então aconteceu o
inesperado, ou talvez aquilo que o mundo oficial, sempre desatento e alheio,
nunca pensara em pesquisar. O Raso tinha água no subsolo. Em alguns pontos era
doce.
Naquele domingo, 16 de
janeiro, pouco antes da chuva, com o ar rigorosamente seco, e tudo queimando
sob 46 graus centígrados,as pessoas bebiam cerveja gelada no único bar do
povoado Salobro, e num chafariz próximo, ao lado da estrada,outros estavam a
refrescar-se com a água cristalina e abundante que jorrava,parecendo um milagre
irreal, acontecendo diante de quem, há muitos anos percorrerao Raso, tendo de
urinar no radiador de um resfolegante Jeep.
Nas taperas encontradas pelo caminho poderia haver alguma água no pote,
para beber nunca negada, mas, seria até desrespeitoso pedi-la para “esfriara
máquina”, tecnologia up-to-date dos anos 40, especifica para a guerra,
eirresoluta, naquele cenário de fascinante insensatez luminosa.
No Raso, naqueles povoados minúsculos perdidos
na sua extensão,ou nos maiores ao redor:Sítio do Tará, São José,Juá, Várzea,
Salobro, Tanquinho, Bonomão, Boa Lembrança, Nambebé, Tabolerinho, Ingazeira,
Riacho, e tantos outros, há poços artesianos jorrando água. Todavia, em alguns deles, geridos por associações,
(sempre elas) cobra-se pelo “precioso líquido”, principalmente se sair de
dessalinizadores,quase nunca funcionando, deixando sérias duvidas sobre o custo
benefício das “ingresias”, que são úteis, mas precisam ser aperfeiçoadas. Compra-se a ficha, e enche-se o vasilhame. 25 centavos, 25 litros. É caríssimo, sai a preço maior do que
a água encanada e tratada. Para aquelas
populações paupérrimas é ¨luxo¨ inacessível.
Água chegando ao
semiárido é o sertão aparelhando-se para a vida, para a vida normal, que lhe
tem sido negada, pela falta de consistência e continuidade nos projetos feitos,
refeitos, ou nunca concluídos. Tem sido assim desde o Império, atravessando a
República.
Desse faz não faz, o
prédio em ruínas da SUDENE, no Recife, serve como testemunho, na triste
eloqüência do seu silêncio.