NOTÍCIAS DE MANGUE SECO
Quando o carnaval começava,
naquele ano de 1976, Aracaju estava reservada para tornar-se o
palco de um dos mais estúpidos episódios que marcaram os momentos
sinistros da ditadura militar debaixo da qual vivíamos. Logo, um quartel
se encheria de indefesos torturados e sádicos torturadores, que, entre
outras ignominias, causaram a cegueira permanente no petroleiro Milton
Coelho, e aviltaram a imagem do exército brasileiro. Naqueles dias de
medo e incertezas o jovem agrônomo Manoel Hora, militante do Partido Comunista
Brasileiro, organização da esquerda que até condenava a luta armada contra o
regime, recebeu um conselho do experiente Paulo Barbosa:¨ Evite ser preso no
carnaval, quando a festa acabar muitos já terão sido torturados ou mortos.¨
Manoel Hora seguiu o conselho. Pegou sua Brasília amarela e foi para Mangue
Seco, onde alguns amigos passavam o verão numa barraca. Naquela praia
isolada, só alcançada por embarcações, sentiu-se seguro. Transcorridos
alguns dias, sem notícias do mundo exterior, sentiu que a ansiedade o
dominava. Naquele cenário de mar, rios imensos, dunas alvascentes,
mangues e coqueirais, sentir-se desconfortável ou ansioso é quase um
crime de lesa- natureza, então, resolveu retornar a Aracaju.
Naquele ano de 76, no minúsculo povoado praiano espremido entre o mar e as colinas
arenosas, não chegavam turistas. A escuna motorizada do engenheiro
Jorge Leite, tragada pela grande cheia de 68, que levou de roldão a fábrica
Santa Cruz e tudo o que estava no porto fluvial da Estancia,
não mais levava os grupos de convidados de Jorge a visitarem a sua reserva
ambiental do Crasto, e a praia na ponta da extremidade do
litoral norte baiano. Mas Jorge Leite já criara a moderna e modernizadora
Sulgipe , que hoje clareia as noites sossegadas de Mangue Seco.
Manoel Hora escapou da prisão, salvou o emprego, e agora, em plena juventude da
velhice, que também se chama meia- idade, vez por outra retorna ao local
onde imaginou o impossível afastamento do mundo e das suas
ameaçadoras turbulências. Nesses quase 40 anos pouca coisa
mudou no povoado, onde a vida ainda corre com a maciez inalterada de quem
sabe que é preciso deixar intactamente primitivo o chão de areia ,
escancaradamente abertas as portas e janelas, e ainda pendurar muitas redes nas
varandas.
Mangue Seco, divergem os seus
habitantes, para uns, tem exatos 260 moradores permanentes, para outros,
já passam dos 300. Deixemos – los com a sua insanável
divergência, ela serve até para lhes fortalecer a peculiar forma
instintiva de valorizar a paz e a polêmica.
Quem, sem ser viscosa ou
viciosamente urbano, não gostaria de viver numa comunidade onde as
pessoas , mesmo as mais velhas, nem lembram de algum crime que ali possa ter
ocorrido?
Em Mangue Seco não há
policiais, e construir uma delegacia seria gasto desnecessário, porque já
faz muito tempo que um morador precisou ser detido, e, se o foi, certamente a
causa teria sido alguma bebedeira além da conta.
No carnaval, quando chegam
muitos turistas, principalmente de Salvador, dois policiais vestindo bermudas
chegam, e ficam sem ter o que fazer. Este ano, foi uma exceção. Quatro ou
cinco jovens turistas pilotando motos, vindos pela manhã logo cedo, se
puseram a fazer manobras radicais com os escapes abertos sobre o
extenso areal que é o centro do povoado, onde há uma igreja, e, naquela hora,
mais da metade da população assistia missa. Os dois policiais os
abordaram e os fizeram pegar a trilha de retorno, mas, proibidos de ligarem
os motores, saíram empurrando as motocicletas até um local onde o
barulho das máquinas não chegasse a incomodar os viventes de Mangue Seco.
As pessoas que assistiam a cena bateram palmas entusiasmadas para
os policiais.
Mangue Seco deve ser um dos
poucos lugares do Brasil onde a policia recebe aplausos.
( Continua domingo )