sábado, 24 de novembro de 2012

POLÍTICA DISCORDANCIA E CONVIVENCIA



POLÍTICA DISCORDANCIA E CONVIVENCIA

 Quando Juscelino Kubitsheck  morreu em agosto de 75, Carlos Lacerda sobre ele escreveu um artigo que  deveria ser  leitura obrigatória para todos os políticos.  Lacerda foi o mais virulento dos  adversários do presidente JK. Tribuno notável, homem culto e espirituoso, ele liderou, com a fúria desatada de um intolerante, a mais agressiva ala da direita  brasileira. Este grupamento,  quase em estado permanente de sublevação,  reunia   militares, políticos, alguns até que se definiam como liberais, setores influentes da imprensa, e uma parte considerável da classe média . O ¨lacerdismo ¨ ganhou corpo principalmente no  antigo Distrito Federal, a cidade do Rio de Janeiro,  que viria, com  a criação de Brasília, a transformar-se no estado da Guanabara, do qual Lacerda foi o primeiro governador eleito.  Lacerdismo e golpismo  andavam de mãos dadas, e a odiosidade e a intolerância eram o seu deplorável traço de união.
Quando Juscelino,  governador de Minas, consolidava  sua candidatura à presidência da República,  formando a aliança imbatível do PSD rural com o PTB urbano e as esquerdas, Lacerda ameaçou, sinalizando aos quarteis: ¨ Juscelino não pode ser candidato, se candidato não pode ser eleito, se eleito não pode tomar posse, se tomar posse terá de ser deposto¨.
Assim,  traçou o roteiro das quarteladas que ameaçaram a eleição, depois a posse, em seguida o mandato, do  maior dos estadistas brasileiros,  que cumpriu a promessa de fazer o Brasil avançar 50 anos no seu mandato de apenas 5. Juscelino,  magnânimo e contemporizador, concedeu anistia aos militares que contra ele se rebelaram, e  superando todos os obstáculos, deu ao país um período criativo, esperançoso, marcado pela liberdade de expressão e transito de ideias inovadoras. Consumado o golpe de 64, Lacerda empenhou-se em demolir Juscelino, então senador da República, e que seria o seu maior oponente, se fossem,  como estavam programadas, realizadas as eleições presidenciais em 65. Juscelino foi cassado, e as trevas da intolerância  se espalharam pelo país. Depois,  Lacerda voltou-se contra o monstro que ajudara a criar, reviu suas posições políticas, acenou aos adversários, entendendo que da união das lideranças civis dependia a sobrevivência do regime democrático. Surgiu a Frente Ampla, e nela estavam juntos os figadais inimigos, Lacerda, JK, Jango. O golpe dentro do golpe de dezembro de 68,  fez sumir os vestígios de respeito às instituições democráticas. Lacerda e Juscelino, a partir da estratégica convivência política,   criaram uma relação de respeito mútuo, e talvez até de amizade pessoal. Eram homens cultos, capazes de manter um diálogo em alto nível sobre o Brasil, sobre o mundo, e descobriram identidades  antes impossíveis.  Presos, perseguidos, humilhados,  se fizeram também solidários na adversidade.
Lacerda, na homenagem póstuma a JK,  exaltou o espirito conciliador do ex-inimigo,  e disse que era difícil combate-lo, pois a cada golpe ele respondia com um gesto de tolerância.  Exaltando o  homem a quem tanto insultara,  fez uma síntese do que vem a ser a prática da boa política, daquela que se faz tendo em vista o interesse público : ¨Não é possível conviver sem discordar, mas, até para discordar é preciso conviver ¨. Escreveu  o redimido Lacerda.
Pouco tempo depois,  Lacerda também morreria, dizem que moído pelos remorsos, pelas frustrações de não ter podido  reconstruir a democracia e, com ela,  restabelecer a civilidade, a elegância no exercício do poder, que o seu antigo adversário, depois amigo   e aliado, Juscelino, soubera manter nos 5 anos em que fora presidente.
Lacerda, que fora   o mais radical, o mais virulento, o mais intolerante  dos políticos brasileiros,  condenado ao ostracismo pela prepotência de um regime que pretendia legitimar-se pela força,  descobriu, tardiamente embora, que a política deve ser sempre a arte de fazer com que os dissensos não eliminem a convivência.
Se lembramos  desses episódios que marcaram um período da historia brasileira, é, tão somente,  pelo interesse quase didático de valorizar a tolerância,  de exaltar valores inseparáveis do jogo democrático, que se corporificam, basicamente, no respeito ao adversário, no comedimento indispensável,  mesmo nos mais acirrados instantes de divergências,  quando,  desde que não haja odiosidades, nem ambições colocadas acima do interesse público, os protagonistas  da cena política sempre poderão preservar o indispensável espaço para o entendimento e a convivência.

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