NO RASO DA CATARINA, 46 GRAUS (1)
O Raso da Catarina é imensa planura rodeada por irregulares serranias. Seria o
deserto brasileiro caso não houvesse, uma natureza
generosa a cobrir o chão ressequido com uma vegetação
única no mundo: a caatinga. Naquelas
paragens baianas onde as chuvas não chegam a 400 milímetros anuais,
se mantém , apesar de tudo, uma vida
exuberante, graças àquela floresta teimosa, com seus galhos retorcidos aparentando estarem secos quando se alonga o estio, ou, esbanjando o verde e as flores nas trovoadas
de verão, nos invernos dadivosos. Assim, torna possível a existência da variada fauna ,
evita a lixiviação do solo e impede a desertificação. Mas , como em todo o sertão nordestino, a caatinga ali encolheu. Resta, ainda, nas encostas das
serras, em algum boqueirão de acesso difícil. São poucos os sinais da antiga e tão incomum cobertura vegetal. Diante
dela, extasiou-se um correspondente do jornal O Estado
de S. Paulo, marchando rumo a Canudos
para cobrir o desatino de uma guerra entre irmãos da mesma pátria,
porém, separados pelos azares da existência que os transformou em passageiros de classes
diferentes no trem da História.
O correspondente era o jovem engenheiro militar tenente Euclides da
Cunha, adido
ao Estado Maior do Ministro da Guerra, Marechal Bitencourt que se deslocava
para instalar o seu Quartel General nos arredores de Canudos. Lá, debaixo de uma tenda, no meio das
asperezas do Raso da Catarina, supervisionaria as operações de guerra contra a
gente pobre, de um povoado miserável, ao
qual Antonio Conselheiro dera o nome de
Arraial do Bom Jesus. Euclides, refinado intelectual republicano, cadete
que se insubordinara diante do Ministro
da Guerra do Império, estava dominado pela
idéia de que os conselheiristas representavam uma ameaça à nascente República.
Depois, no desenrolar do conflito, corrigiria o
equívoco ao escrever a sua obra fundamental: Os Sertões.
Domingo, dia 17 de janeiro, o Raso da Catarina estava mais
ressequido do que nunca. Ao longo de cinco anos faltaram as trovoadas estivais
e os invernos de boa chuva.
Um grupo, saído de Canindé, chega à cancela fechada a cadeado
, entrada da Reserva Ecológica do Raso da Catarina . Numa casa ao lado, sede da
administração, não há viva alma, talvez por ser domingo .
Dali em diante são
quase cem mil hectares recobertos inteiramente pela caatinga preservada, onde, quase livre de caçadores, multiplica-se
uma variada espécie de bichos, entre eles as araras azuis, já livres da
extinção.
Para entrar na reserva
é indispensável uma licença do IBAMA. Isso era sabido, mas o objetivo seria
apenas traçar um roteiro de acesso para
a Expedição Serigy, denominação do grupo que está sempre em busca de veredas, serras, praias,
rios, nascentes , matas, na ânsia pela natureza remanescente.
Sendo impossível
percorrer a Reserva , este
escrevinhador, que por ali acostumou-se
a ir vez por outra, desde 1980, quando o Raso da Catarina estava ainda quase como Euclides o
vira cem anos antes, propõe uma caminhada por uma trilha que acompanha a cerca delimitando a área protegida, mas, ao volante
da camionete, Adailton consulta o termômetro
e higrômetro , e anuncia: 46 graus de
temperatura, 15 por cento de umidade do ar. Com o sol esbraseando o chão
pedregoso e esterilizando o ar, que parece um luminescente vidro translúcido,
Eliane e as duas sertanejas, todavia precavidas, Iara e Amanda, sugerem um
retorno em busca de qualquer local onde houvesse sombra e água fresca.
Ainda longe, no horizonte , cresciam e avançavam em semi-círculo, aquelas massas
escuras que revoluteiam no ar como ondas gigantescas: as cúmulus- nímbus . Sem o anúncio estrondoso dos trovões
o vento já trazia de longe aquele sonhado cheiro de terra molhada. Antes que
o sol no poente pintasse de rubro e dourado as nuvens escuras, caia, sobre todo o Raso da Catarina a primeira chuva
forte, após tantos verões e invernos de desesperanças . ( CONTINUA)
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