sábado, 23 de janeiro de 2016

NO RASO DA CATARINA, 46 GRAUS (1)



 NO RASO DA CATARINA,  46 GRAUS (1)
O Raso da Catarina é imensa  planura  rodeada por irregulares serranias. Seria o deserto brasileiro  caso não houvesse,   uma natureza  generosa  a  cobrir o chão ressequido com uma vegetação única no mundo: a caatinga.  Naquelas paragens baianas  onde  as chuvas não chegam a 400 milímetros anuais, se mantém , apesar de tudo, uma  vida exuberante,  graças àquela  floresta teimosa, com seus galhos retorcidos  aparentando estarem secos quando  se alonga o estio, ou,  esbanjando o verde e as flores nas trovoadas de verão,  nos invernos  dadivosos. Assim,  torna possível a existência da variada fauna , evita a lixiviação do solo e impede a desertificação.  Mas , como em todo o  sertão nordestino, a caatinga ali  encolheu. Resta, ainda, nas encostas das serras, em algum boqueirão de acesso difícil. São poucos os sinais  da antiga e tão incomum cobertura vegetal. Diante dela, extasiou-se um correspondente do jornal   O Estado de S. Paulo,    marchando  rumo a Canudos  para cobrir o desatino de uma guerra entre irmãos da mesma pátria, porém, separados pelos azares da existência que os  transformou em passageiros de classes diferentes no trem da História.
O correspondente era o  jovem engenheiro militar tenente Euclides da Cunha,    adido ao Estado Maior do Ministro da Guerra, Marechal Bitencourt que se deslocava para instalar o seu Quartel General nos arredores de Canudos.  Lá, debaixo de uma tenda, no meio das asperezas do Raso da Catarina, supervisionaria as operações de guerra contra a gente  pobre, de um povoado miserável, ao qual  Antonio Conselheiro dera o nome de Arraial do Bom Jesus. Euclides, refinado intelectual republicano, cadete que  se insubordinara diante do Ministro da Guerra do Império, estava dominado      pela idéia de que os conselheiristas   representavam uma ameaça à nascente República.
  Depois,  no desenrolar do conflito, corrigiria o equívoco ao     escrever a  sua obra fundamental: Os Sertões.
Domingo, dia 17 de janeiro, o Raso da Catarina estava mais ressequido do que nunca. Ao longo de cinco anos faltaram as trovoadas  estivais  e os invernos de boa chuva.
Um grupo, saído de Canindé, chega à cancela fechada a cadeado , entrada da Reserva Ecológica do Raso da Catarina .   Numa casa ao lado, sede da administração,   não há viva alma, talvez por ser domingo .
 Dali em diante são quase cem mil hectares recobertos inteiramente  pela caatinga preservada,  onde, quase livre de caçadores, multiplica-se uma variada espécie de bichos, entre eles as araras azuis, já livres da extinção.
 Para entrar na reserva é indispensável uma licença do IBAMA. Isso era sabido, mas o objetivo seria apenas traçar um roteiro  de acesso para a Expedição Serigy,   denominação do grupo que está  sempre em busca de veredas, serras, praias, rios, nascentes , matas, na ânsia pela natureza remanescente.
 Sendo impossível percorrer a Reserva ,     este escrevinhador,  que por ali acostumou-se a ir vez por outra, desde 1980, quando o Raso  da Catarina estava ainda quase como Euclides o vira cem anos antes, propõe uma caminhada por uma trilha  que acompanha a cerca   delimitando a área protegida, mas, ao volante da camionete, Adailton  consulta o termômetro e  higrômetro , e anuncia: 46 graus de temperatura, 15 por cento de umidade do ar. Com o sol esbraseando o chão pedregoso e esterilizando o ar, que parece um luminescente vidro translúcido, Eliane e as duas sertanejas, todavia precavidas, Iara e Amanda, sugerem um retorno em busca de qualquer local onde houvesse  sombra e água fresca.
Ainda longe, no horizonte ,  cresciam e avançavam em semi-círculo, aquelas massas escuras que revoluteiam no ar como ondas gigantescas: as  cúmulus- nímbus . Sem o  anúncio estrondoso  dos trovões   o vento já   trazia de longe  aquele sonhado cheiro de terra molhada. Antes que o sol no poente pintasse de rubro e dourado as nuvens escuras, caia, sobre  todo o Raso da Catarina a primeira chuva forte, após tantos verões e invernos de desesperanças  . ( CONTINUA)

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