MARCELO DÉDA, OU A NOBREZA DA POLÍTICA
A ESTRELA E AS CINZAS ( 1 )
Passava um pouco das 5 horas de uma tarde quente, como costumam ser aqui todas as tardes de
dezembro, quando o avião da Força Aérea
Brasileira decolou do aeroporto de
Aracaju levando o corpo do governador Marcelo Déda. Na pista, onde poucos conseguiram chegar, o deputado João Daniel, líder
do MST, erguia com os braços abertos num gesto de exaltação e despedida, a
bandeira rubra do Partido dos Trabalhadores. Os raios vindos de um enfraquecido sol vespertino que descambava, esbatiam-se, quase horizontais, sobre o pano vermelho, tornando-o
translúcido, e quem estava próximo, através dele, podia divisar o avião que ia sumindo, envolvido
num difuso tom escarlate que coloria, no céu, o seu trajeto.
Era então o momento de enxugar as
lágrimas. Junto ao grupo que conseguiu
ultrapassar a faixa de segurança do pátio
de manobras, um militar caminha murmurando: ¨A estrela partiu ¨.
Quando, na madrugada em que
findou o alongado calvário, Eliane, a mulher sempre presente a acompanhar os
passos doloridos rumo ao final, sem
nunca, pela força do amor infindo desligar- se de um tênue fio de esperança, não querendo falar em morte
ao filho menos criança, João Marcelo, usando também a metáfora da estrela, disse:
¨Agora, quando você olhar o céu, aquela estrelinha mais brilhante será papai. ¨
A estrela do PT esteve sempre presente na vida de Déda, nela, ele
enxergava aquilo em que sempre acreditou e dedicou a sua vida pública,
elaborando uma outra metáfora, a da
estrela que, na visão cristã, ilumina e
guia o caminho a ser percorrido rumo à solidariedade, à liberdade e a Justiça,
talvez até, a uma quase utópica
igualdade.
Déda, ele próprio uma estrela de
primeira grandeza no cenário nem sempre iluminado da vida pública brasileira,
não perdeu o brilho, nem mesmo quando
morria aos poucos, sem uma palavra de desespero ou revolta, e mesmo
definhando, sonhava, divagava, falava sobre o futuro que não seria mais o dele,
todavia, o de Sergipe, do Brasil, dos
seus filhos, da sua gente. E conseguia fazer poesia, uma delas, denominada Gênesis, momento da criação, do surgimento da vida, da qual ele
conscientemente se despedia.
Foi assim: Houve, durante 6 anos
11 meses e 2 dias, um governador
de Sergipe que foi poeta, sonhador, um ser humano exemplar, homem público íntegro, que superou a própria
ruina física, e manteve intacta a mente,
decidido a tornar-se um exemplo, ao
mesmo tempo de resignação e crença na vida. Quando Déda pediu para ser cremado e traçou o roteiro ou a
liturgia para as suas cinzas, ali estava o homem humilde, e também superior, que se enxerga pó e ao pó retorna. O homem que,
tendo a capacidade de refletir quase sonhando, contempla o céu numa noite estrelada, e se vê
minúsculo, vagando no espaço infinito sobre uma esfera ínfima. Probabilidade remota, o que não significa
impossível, caso o planeta onde vivemos se choque com um grande asteroide, irá desintegrar-se, sem que isso, para o
universo, signifique tanto quanto a folha caindo ao chão de uma floresta imensa .
A folha morta porém se transforma em
húmus que fertiliza a terra. Assim,
enquanto não acabar o espaço entre o
gênesis e o apocalipse, seja de acordo com a criação bíblica ou os cálculos precisos da ciência, é preciso crer na vida e
realimentá-la, num ato supremo de solidariedade com o futuro do planeta e dos
seus habitantes. Marcelo Déda, homem
culto, uma enciclopédia em permanente ebulição, deve ter pensado dessa forma, então,
quis que as suas cinzas fossem esparzidas sobre as raízes de duas árvores que
ele e Eliane, felizes e juntos, um dia
plantaram no parque Augusto Franco, a Sementeira; uma outra parcela iria ,
ele orientou, ser lançada ao mar que ele
contemplava como espaço para ousadias e aventuras, e a outra, pela família, certamente a ser depositada em Simão Dias, a sua terra.
Camilo Castelo Branco o
romancista português que foi um vulcão
de criatividade, semeador rebelde de ideias, disse ao morrer: ¨Não deixo nada,
só o exemplo ¨.
Déda também não deixou nada, nada
material, mas, semeou exemplos, muitos
exemplos , entre eles, o da nobreza da política.
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