O trabalhador era biscaiteiro. Saíra de casa à tardinha depois do trabalho. Fora comprar, na quitanda, o leite para fazer um pudim. Dia do aniversário da mulher, ele queria fazer-lhe uma surpresa. Morava em Xerém, distante subúrbio do Rio, lugar onde o vento faz a curva. Retornava pedalando uma bicicleta. Em sentido contrário, acabando de descer a serra, vindo de Itaipava, reduto de milionários, chegava à baixada fluminense o bólido prateado. Uma Mercedes SLR- Mac - Laren, motor V-8 , potência de 626 cavalos, faz 334 quilômetros por hora, um dos 75 exclusivos modelos fabricados pela sofisticada montadora alemã. É carro prodigioso, quase um foguete. Roda de 0 a 100 quilômetros em 3.85 segundos, e de 0 a 300 em 28,8. Considerando-se que os nossos limites de velocidade variam de 60 a 80 quilômetros nas cidades, e só em raras autopistas chegam a 140, fica a pergunta: Para que serve um despautério desse, no nosso tráfego urbano congestionado, ou nas nossas quase sempre precárias estradas? Serve sim, para ostentar riqueza, inflar o ego desmesuradamente grande de quem já é desmesuradamente rico. Mas não só isso. É máquina mortífera, mesmo pilotada com todos os cuidados. Como manter o bólido dentro dos limites de velocidade, se uma leve pisada no acelerador já o faz ultrapassar os 100 quilômetros? Ninguém que o dirija pode fazer o milagre de evitar pontos de punição na carteira por ultrapassagem da velocidade máxima. A mais de 200 quilômetros, por mais tecnologia de freios ultramodernos, um piloto não conseguirá domar tanta força e fazer o SLR parar, antes de percorrer cem metros. O carro é uma dupla dose de estupidez com incoerência, tanto de quem o pilota, como do poder público, que permite livremente a importação ou a fabricação no Brasil de automóveis com mais de duzentos cavalos de potência . O que dizer então de um carro com motor de 626 cavalos, mais do que a potência dos dois motores do Douglas DC-3, que foi o avião de passageiros e transporte de cargas mais utilizado no mundo por empresas e forças aéreas?
Thor, o jovem filho do empresário Eike Batista, ao volante da joia prateada de um milhão e setecentos mil reais, pode até nem ser culpado, mas, mesmo culpado, a sua responsabilidade se dilui diante da irresponsabilidade como o Estado brasileiro costuma administrar certas questões . Já o trabalhador morto, este , como tantos outros, terá sido mais uma vítima dessa recorrente dupla circunstância: o exibicionismo arrogante e afrontoso dos muito ricos, e a omissão culposa do poder público.
Como os nossos parlamentares na sua grande maioria ainda não estão a pilotar Ferraris, ou Mac-Larens, não seria então o momento para que apresentassem um projeto proibindo a importação ou fabricação no Brasil, para venda interna, de automóveis com mais de 200 cavalos ? ( O senador Valadares, que, saudosista, conserva ainda na sua garagem um fusca e um DKW, tem tudo para ser o autor do projeto). Algum deputado estadual não poderia apresentar uma lei, proibindo a venda ou a circulação em nossas rodovias de automóveis acima daquele limite de potência? Daríamos um bom, um saudável e atualizado exemplo.
Fugiria das suas atribuições o Ministério Público, se resolvesse entrar nessa questão?
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