Na década dos setenta fez relativo sucesso uma série de filmes documentários intitulada no original Mondo Cane. Era produção italiana, ensina o mestre cinéfilo Ivan Valença, daí o nome assim na língua de Dante Alighieri, que, usando-a magistralmente descreveu as suaves delícias santas do céu, o sofrido transito pelo purgatório e um outro mundo tétrico, o próprio habitat de satanás
o inferno. Para o português a série ficou sendo mesmo literalmente traduzida: Mundo Cão. Mostravam os filmes com uma crueza impactante episódios da batalha pela vida que se desenrola paradoxalmente acompanhada de morte e destruição, tudo no mundo animal, onde se inclui o ser humano. Nada de ficção, tudo muito real, até porque tratava-se de documentar fatos, ocorrências, situações. O mundo cão era uma mostra cruamente realista da vida sobre o nosso tão castigado planeta. Bichos devorando bichos naquela selvagem darwiniana ¨strugle for life¨ característica de uma sociedade primitiva onde um bicho que se homenageia com o título de ¨sapiens¨ tantas vezes parece desmerecer a honraria que o distingue dos outros, aqueles que matam, esfolam, devoram, destroem, e que fazem isso para saciar a própria fome, sem se sentirem constrangidos, até porque são irracionais, ou seja, falta-lhes a consciência dos atos que praticam, sobretudo dos danos que causam, das dores provocadas.
A consciência moral segundo o filósofo Immanuel Kant, um atributo inerente aquele bicho privilegiado, o homo sapiens vez por outra falha ou o abandona completamente . Nesses instantes de colapso o homem se faz a besta, o lobo do próprio homem.
Depois de mergulhar ao mais recôndito desvão da alma humana o escritor russo Dostoiévski constrói no personagem Raskólnikov o tipo cruel do criminoso ególatra que planeja meticulosamente matar a velhinha hospedeira que o acolhe deixando de lado quaisquer outras considerações que não sejam os ganhos que poderia auferir com o crime. Mas o jovem estudante ao confrontar-se com o juiz encontra, no mais profundo da sua alma pútrida, um lampejo de consciência que o redime enquanto ser humano ao não se eximir da culpa.
Henry Truman, o presidente americano que ordenou o lançamento das bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, quando o Japão já estava vencido, só para dar um ¨recado¨ aos russos , ele, os seus generais, os seus cientistas, exceto uns poucos depois arrependidos, morreram todos sem nunca ter demonstrado qualquer drama de consciência.
Napoleão passeava cabisbaixo e pensativo pelo terreno juncado de cadáveres e feridos após as batalhas . O sentimento de culpa ou de remorso, se o atormentava, durava apenas até a próxima solenidade palaciana onde ele iria exibir-se ¨coberto de glórias ¨.
Nos derradeiros dias da Segunda Guerra, enquanto tremiam sob bombardeio intenso as estruturas fortificadas do seu bunker berlinense, Adolf Hitler despejava maldições sobre o povo alemão que, segundo ele perdia o direito à existência por não ter conseguido subjugar os inimigos, completar a ¨solução final ¨, o extermínio de todos os judeus.
Hoje , judeus que rezam contritos diante do Muro das Lamentações, na Jerusalém de onde expulsaram os palestinos, são, muitos deles, membros de assentamentos que vão sendo criados ilegalmente, pela força, todos os anos, nas áreas pertencentes ao Estado da Palestina que vai sumindo do mapa dia a dia. Nesses três ilustrativos episódios o atributo kantiano inerente ao ser humano mais uma vez teria escapado.
Cria-se assim o Mundo Cão, aquela permanente insanidade que parece destruir a consciência moral.
Semana passada o fato midiático mais aterrador aqui bem perto de nós, aqui entre nós, foi a frieza como um morador de rua que era também assaltante, latrocida, uxoricida, descreveu os detalhes do assassinato da mulher. Atravessou-lhe uma faca na garganta, com essa mesma faca, abriu o peito da morta, de lá retirou-lhe o coração, depois, com ele fez um churrasco. Convidou amigos para o almoço canibal regado a muita cachaça. Não dava sinais de loucura, parecia absolutamente consciente do que fez, com a tranquilidade de quem não é atormentado pelo arrependimento. É difícil traçar o exato limite entre a razão e a loucura, mais ainda, quando se está diante de um personagem saído daquela lixeira da droga, da violência onde jogamos os miseráveis, daquela lixeira de onde se esvaem os vestígios de humanização.
Já um outro personagem, o governador do Texas, candidato forte a ser o próximo ocupante da Casa Branca, vangloriou-se diante de um auditório repleto de nunca, em onze anos de mandatos sucessivos, ter comutado uma só das mais de 250 condenações à pena de morte naquele período. O governador que se diz fanaticamente cristão, foi delirantemente aplaudido de pé pela entusiasmada plateia, toda ela formada por cristãos, que odeiam os muçulmanos e os consideram sanguinários terroristas. Dias depois, um sentenciado negro também no Texas de George W. Bush, foi executado com uma injeção letal. Havia fortes indícios de que poderia ser inocente, mas, um juiz do tribunal que o condenou escreveu: ¨O réu apesar de declarar-se inocente não deve merecer crédito, pelo seu passado e porque se trata de um negro. ¨
A grande mídia do mundo livre, ocidental e cristão, entre ela a brasileira, quase ignorou a execução do negro, a bestialidade do governador texano e dos seus ouvintes, todos eles fieis frequentadores de igrejas cristãs.
Parece que Nietsche, filósofo cético e pessimista, tinha alguma razão quando disse que depois de tantos séculos de cristianismo, o único cristão que pisou sobre a terra foi mesmo o Cristo.
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