domingo, 31 de julho de 2011

CLEOMAR, QUATRO EPISÓDIOS

Levado ao túmulo, com carinho e saudade transformados em festiva ode à vida que ele sorveu até o último gole, no caso, literalmente, Cleomar Brandi deixou um repertório imenso de episódios por ele protagonizados ou assistidos, e neles revelou as características, a grandeza humana de quem soube, como poucos, resistir às adversidades, transformar o martírio em comédia, fazer da resignação uma arte sábia para superar e viver, ocultando a dor, e querendo, ao invés da piedade a convivência  calorosa com os amigos, o amor enquanto durasse, com tantas mulheres. Multiplicador de afetos, crítico irônico, mordaz, nunca agressivo, das futilidades que cercam a existência, Cleomar,  na pressa tumultuária como entendeu que deveria levar a vida  que periclitava, era, por outro lado, o  jornalista que fazia contraponto ao boêmio, na assiduidade ao trabalho, no senso de ética e responsabilidade diante da profissão. Se não houvesse escrito nada, a Cleomar bastaria a crônica final, A Última Saideira, para revelar o cronista primoroso, o ser humano superlativo.
Contemos quatro episódios que ajudam a compreender a excepcionalidade do ser humano que foi Cleomar:
Depois de amputar a perna que lhe restava, chega um amigo para visitá-lo, antes, procurando comovidamente ensaiar o que deveria dizer para não o entristecer, e Cleomar o surpreende: - Olhe, eu tenho agora uma grande vantagem, nesse surto de dengue estou livre da doença. Soube que o mosquito só ataca nas pernas.
Chega um amigo na TV- Aperipê e encontra Cleomar na cadeira de rodas do lado de fora, fumando e  percorrendo com os olhos os galhos de uma árvore frondosa, como se estivesse a procurar alguma coisa.
Entra para fazer uma entrevista, e na saída Cleomar está a esperá-lo, e começa a contar-lhe porque fazia a inspeção nas árvores. Ele alimentava os pássaros e ficava a proteger os ninhos, contando os filhotes, acompanhando o crescimento deles. Vinha notando que os passarinhos estavam sumindo, os filhotes devorados, e o culpado de tudo era um gato que ele andava a procurar. Mal acabou de dizer isso e um gato gordo, pachorrento, felinamente sinuoso, passa despreocupado por perto, vai refestelar-se sobre a grama e logo dorme um sono tão profundo e indiferente como o daqueles gatos bem saciados que habitam, preguiçosos, o parque Palermo em Buenos Aires. Cleomar diz baixinho: - Vou acertar as contas com este bicho. E o amigo pergunta-lhe: Vai matar o gato?
Cleomar mostrando-se até ofendido retruca:- Não, nunca, não admito nenhuma execução, mesmo de um gato assassino.
Perto, estavam uns pedreiros fazendo a recuperação de um piso, e Cleomar desloca-se lépido na sua cadeira de rodas até eles. Combina alguma coisa. Pouco depois, dois pedreiros, cada um com um grande balde cheio de água aproximam-se do gato, passam cuidadosamente ao lado, e jogam sincronizada e certeiramente a água sobre o dorminhoco, que dá um atlético pulo e dispara numa carreira louca.
Cleomar ri como uma criança, ri tanto e tão gostosamente celebrando a vitória sobre o gato predador, que quase cai da cadeira.
Dias depois o amigo telefona e pergunta: Cleomar, e o gato?
E ele falando sério: - O bichano até hoje não voltou, agora eu estou preocupado. Será que o bichinho pegou uma gripe?
Aproximava-se o Baile dos Artistas e Cleomar anuncia aos amigos que iria aparecer por lá vestindo uma fantasia sensacional. No dia do baile, por volta da meia noite entra montado na sua cadeira de rodas, exibindo um riso imenso e maroto. Sobre o que lhe restava de uma das pernas jogou uma tinta vermelha, espalhou manchas pelo corpo como se fosse sangue, e com o braço erguido exibia um cartaz onde estava escrito: Pisei numa mina.
Esse derradeiro episódio, ele sempre contava tentando disfarçar a emoção: Estava, como sempre na sua cadeira de rodas, parado em um parque. Vai passando uma menininha de uns 4 anos com a mãe levando-a pelo braço. A criança para em frente à cadeira, fica olhando para ele, fixa os olhos sobre a perna amputada, e, de repente, solta-se da mãe. Vai até um jardim próximo, colhe uma pequena flor, e vem em passos miúdos, silenciosamente, como se quisesse surpreendê-lo.  Num gesto quase furtivo, cuidadosa, carinhosamente, deposita a flor sobre a perna inteira. Sorri, afasta-se levemente, flutuando como um anjo.
E Cleomar sempre poeta, concluía: - Tem melhor presente do que uma flor dada por uma criança ?

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