sábado, 4 de junho de 2011

RETALHOS DE UMA VIAGEM (2) MENOS POLÍCIA, MAIS CIVILIZAÇÃO


A Finlandia venceu a Copa Européia de rugby, que é, para os finlandeses, algo como o futebol para os brasileiros. Terem vencido na final a Suécia, foi motivo de orgulho e júbilo ainda maiores. Os suecos por volta do século dezessete, atravessaram as florestas pelo norte gelado, ou cruzaram as águas do golfo de Botnia e foram ocupando as planícies pontilhadas por uma infinidade de lagos e habitadas por tribos selvagens, os suomien, que davam o nome Suomi àquelas terras quase despovoadas. Ou seja, a Finlandia moderna foi “descoberta” depois que Cabral derrapou pelo Atlantico fazendo aquele arco pelo oeste que resultou no achamento do Brasil. Os suecos se tornaram colonizadores, e anexaram ao seu país as novas terras fronteiriças, todavia, mas até então inacessíveis. Foram os civilizadores daquela gente, como eles nórdica e loira, que  ainda levava uma vida primitiva, mas, insistia em preservar a sua língua incomum, que,  tanto quanto o basco continua dando dores de cabeça aos lingüistas, que não conseguem identificar suas origens,   e entre as duas encontram algumas semelhanças. Depois, no século dezoito, os tzares russos  que ainda governavam da antiga capital, São  Petersburgo, não aquietados dentro da extensão infinda do seu império, entraram em guerra com  a Suécia, expulsaram as suas tropas da Finlandia, e ali criaram um Grão Ducado. Tudo ficou assim, até que, durante a Primeira Grande Guerra, Lênin, para segurar-se no poder bolchevique recém conquistado, teve de fazer grandes concessões  territoriais, devolvendo terras aos alemães e aceitando a independência finlandesa. Os finlandeses tiveram de conviver com a nova potencia ameaçadora, a União Soviética, que não perdera a fome expansionista dos tzares, e tinha,  ainda mais agora, a “missão”de  espalhar pelo mundo a fé revolucionária do ” país do proletariado.” Quando Stalin firmou o pacto  de não agressão e   fez a criminosa parceria bélica com a Alemanha hitlerista, o ditador soviético entendeu que estava na hora de aliviar a super-povoada São Petersburgo, levando parte dos seus moradores além da península da Carélia, para irem se fixar no que ele chamava de “Finlandia despovoada”. Despachou seus exércitos para a invasão   e encontrou uma resistência tenaz dos finlandeses. Perdeu batalhas, mas teve tempo suficiente para reorganizar-se e aumentar seus efetivos, enquanto a prometida ajuda aos finlandeses, feita pela França e Inglaterra não conseguia chegar, porque a Suécia, neutra, não permitia que tropas estrangeiras cruzassem seu território. Derrotada, a Finlandia  teve a oportunidade para expulsar os russos, quando Hitler rompeu o pacto e suas tropas marcharam em direção a Moscou. Depois, os finlandeses lutariam contra os alemães, e também os expulsariam.  Nesse período de sofrimento e sacrifícios, forjou-se bem forte o caráter de uma nação quase recém nascida, que já conseguira, também, criar uma forma de convivência democrática sintonizada com a economia de livre iniciativa   disciplinada por rígidos mecanismos estatais.   Isso garantiu uma repartição equilibrada da riqueza. Parece que os finlandeses descobriram a tão almejada fórmula da liberdade individual com  uma economia de mercado que não vai além dos limites do interesse social. Assim,  criaram uma sociedade  que alcança elevados patamares de vida com absoluto respeito ao meio ambiente, numa  arquitetura democrática exemplar,  sem os traumas revolucionários das fracassadas experiências  autoritárias do socialismo equivocado que desmoronou.
Mas então, aquela vitória, justamente sobre a Suécia, alcançada pela  equipe nacional finlandesa,   valeu como uma reafirmação do orgulho  da nação, despertando fervores patrióticos nos seus pouco mais de 5 milhões de habitantes.
  Em Helsinky,  as grandes comemorações do feito esportivo estavam marcadas  para as  sete horas de dezessete de maio,   num grande espaço livre da cidade, junto ao porto. A vitória fora no domingo, mas, os finlandeses sempre metódicos, programaram o momento exato para a explosão de júbilo.  Não houve feriado. Depois do expediente normal as pessoas mudaram a rotina, ao invés de tomarem o metrô, os trens de superfície, os barcos, os bondes, os ônibus, as bicicletas, e seus raros veículos motorizados individuais para retornarem às suas casas,  vieram caminhando festivamente pelas ruas, num dia primaveril ainda bem claro,  rumo à praça central,  escolhida para a comemoração. Havia uma disciplinada algazarra, pessoas fantasiadas carregando bandeiras, rostos pintados de azul e branco, as cores nacionais, homens  com aqueles capacetes metálicos encimados por enormes chifres, parte da armadura guerreira dos Vikings.  Toda a cidade de pouco mais de um milhão de habitantes parecia convergir para o local da festa. Mais de duzentos mil lá se concentraram. Não havia vestígio de polícia nas ruas. Nenhum policial para direcionar ou  supervisionar o deslocamento daquela multidão. Era uma espontaneidade perfeitamente organizada.  E quase todo mundo levava garrafas de bebidas, alcoólicas, certamente. O finlandês bebe muito, e é orgulhoso da sua vodka nacional, que, garantem, é superior às melhores russas, suecas ou polonesas. E mais barata. Pode não ser a melhor, mas certamente não fica abaixo da qualidade das   mais famosas concorrentes. Os  vinicultores gaúchos  já descobriram que ali , onde tanto se bebe, poderá surgir  um bom mercado  para os seus produtos, e em maio, realizavam, assim mesmo, escrito em bom português: O Carnaval Festa do Vinho Brasileiro, com bandas , cantores, degustação e tudo o mais. Era parte de um evento internacional de enologia que se realizava na pequena cidade lacustre de Kuopio, na parte central da Finlandia. Pouco depois das vinte horas chegava ao local da festa, em caminhão aberto, a equipe campeã. O capitão do time erguia a taça e a multidão aplaudia e gritava, quase uns urros que repetem nos estádios para incentivar os jogadores,  também,   para exaltar o orgulho patriótico. Por toda parte tremulavam bandeiras brancas com a cruz azul disposta horizontalmente  na extensão do quadrado. Muitos nelas se envolviam,  e alguns casais juntavam-se embrulhados em uma só.  Casais, sempre de homens e mulheres. Os gays transitam discretos, sem receios de preconceitos, apenas, contidos pela formalidade finlandesa que faz inadmissível a exteriorização efusiva de sentimentos. Em um restaurante, se alguém chamar um garçon em voz alta ou  tentar fazer-lhe uma sinalização menos delicada, usando braços e mãos, poderá ser gentilmente convidado a retirar-se. Não são aceitas gorjetas, e alguns garçons, principalmente garçonetes, mostram-se desconcertados se alguém as oferece.
 Quando desceram  do caminhão rumo ao palco, sem um só segurança a proteger-lhes, os atletas vitoriosos livres de qualquer empurra empurra,  distribuíam autógrafos  às moças que os cercavam em atitude de quem contemplava deuses.
 Chegou a presidente, uma senhora sorridente, simpática e redondinha. Cumprimentou os atletas, ergueu com eles a taça, fez um discurso que não passou de dois minutos, foi muito aplaudida, e retirou-se sem nenhum aparato de segurança a cercá-la. Helicópteros sobrevoavam a praça, mas não eram da polícia. Transportavam equipes de televisão que faziam a filmagem da festa. Um conjunto de aspecto modesto começou a tocar, as pessoas cantavam, dançavam. Pouco antes da meia noite a festa acabou. Agora, já se viam dois carros de polícia circundando o local. Dentro da semi-claridade de uma noite  de primavera nórdica, as pessoas foram deixando a praça.  Não havia automóveis estacionados por perto. O metrô naquela noite funcionou até mais tarde. Em menos de uma hora as ruas estavam outra vez desertas e silenciosas, Ao longe, ouviam-se um ou outro buzinaço de poucos automóveis que passavam com  gente fazendo alarido. Nenhum som de sirenes policiais ou de ambulâncias. Sinal evidente de que a enorme festa transcorrera sem incidentes. Certamente, na Finlandia, onde a polícia segue padrões rigorosos de profissionalismo exigidos por uma sociedade civilizada, que sabe exatamente o que quer, e bem claramente enxerga seus direitos e deveres, se houvesse alguma reivindicação salarial dos policiais, nenhum dos seus líderes se atreveria a dizer, em televisões, jornais, ou emissoras de rádio, que, se não fossem atendidas as suas exigências,  não fariam a segurança no dia da comemoração do campeonato conquistado pela equipe nacional de rugby. Na Finlandia a sociedade se respeita, e se faz respeitar.

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