terça-feira, 31 de maio de 2011

RETRATO DO POETA QUANDO NU


Vadeiam anjinhos barrocos com glúteos bem rechonchudinhos pelas igrejas do mundo todo. O barroco brasileiro deu a eles uma certa sensualidade tropical,  precavidamente disfarçada naquela feição, - já que tratamos deles - necessariamente angelical, que é inseparável atributo de todos os querubins.  Na capela Sistina pelo interior dos austeros muros do Vaticano há nus esteticamente explícitos. Perderia a arte, perderia o mundo, se a romana e católica igreja, seus papas e cardeais, não houvessem absorvido aquele sentimento de admiração pelo belo, pela cultura, que, apesar dos purificadores churrascos inquisitoriais, sobreviveu no mecenato aos artistas, no zelo pelos códices, pelos velhos manuscritos gregos, árabes. E nos murais das igrejas, nas bibliotecas dos conventos, o renascimento ganhou força. O homossexualismo grego elevou à perfeição as linhas masculinas. E o ideal apolíneo é a estética sensual dos machos helênicos, que, como recomendava Platão, se tornavam melhores combatentes quando integravam falanges guerreiras de amantes, fortes, musculosos, ágeis e apaixonados.
Tudo isso soa estranho, até repulsivo para outra categoria de machos que identifica a beleza na estátua de Apolo, mas só sente uma coceira de excitação olhando  os peitinhos, as coxas  juntas, delineando uma vagina tímida e adornada pela geométrica poesia de uma bunda maciamente rígida,  proporcionalmente carnuda, assim, nem faz falta a cabeça perdida da Vênus de Milo. Trata-se aqui de gostos estéticos idênticos, mas de preferências sexuais distintas. E nesse terreno que é um tanto inconsútil se faz indispensável à plena aceitação da diversidade.  O Supremo Tribunal Federal acaba de dar proteção legal à opção sexual de cada um ao reconhecer a união estável entre casais do mesmo sexo, ao mesmo tempo, a presidente Dilma Roussef  não permitiu que nas escolas públicas se distribuísse um material supostamente de advertência contra a homofobia, mas, que acabava por fazer apologia à opção homossexual.  Nesse sensível quesito da diversidade, há que se ter olhos atentos para que se evite uma derrapagem do bom senso. Há uma diferença de bom tamanho entre senso comum e bom senso. Para que exista avanço, progresso, desafio, superação de preconceitos, o senso comum que quase sempre carrega o hálito pesado do conservadorismo reacionário terá, sem escapatórias, de ser enfrentado, algumas vezes derrotado, posto à margem, esquecido. Mas é indispensável que exista o bom senso para que se faça com sucesso essa jornada, espécie de desvendamento do futuro. Aos revolucionários, que juntaram a poesia ao fuzil, como fez Guevara, ou aos poetas somente, embriagados no devaneio dos versos, dos álcoois e da loucura, sempre coube um papel precursor. Aos que quiseram revolucionariamente construir, não houve alternativa a não ser o apego tático, ou a rendição ao bom senso. Mas há os poetas sonhadores, insatisfeitos, anárquicos, embevecidos no desvario da transcendência da arte, que pouco se dão trabalho de consultar os manuais vezeiros e useiros das regras aceitas do senso comum, também, aos escaninhos da mente onde se escondem vestígios do bom senso. Um poeta assim é Araripe Coutinho, a boteriana figura de uma nudez não inteiramente desvendada, no ensaio palaciano que lhe rendeu fama, e não apenas de uns parcos quinze minutos. No caso de Araripe, monstro de criatividade e intimidades reveladas, há ainda, além de tudo, aquela avassaladora ânsia, uma espécie de furor das entranhas, na manifestação agressiva de uma talvez insatisfeita homossexualidade. Isso o fez buscar o cenário do Olímpio Campos para um ensaio fotográfico, onde exibiu, quase exibiu, não fossem os cafonérrimos raminhos de flores, todas as reentrâncias ou protuberâncias adiposas de um corpo obeso.  E o pior de tudo é que o rosto crispado, quase austero, parecia uma tentativa de imitar as feições carrancudas de alguns ocupantes antigos daquele palácio, que ali fizeram bons ou mal sucedidos ensaios como figurantes no cenário cambiante do poder. Faltou ao poeta, quem sabe, um vasto bigode, suíças, ou afilados cavanhaques. Se os tivesse, se tornaria o clone despido de algum presidente do Estado de antes da revolução de 1930.  Em si mesmo, o ensaio fotográfico foi um desastre estético que em nada condiz com a preciosidade dos textos em poesia ou prosa que Araripe produz.
Vivesse na década de vinte de um século que já se foi, o gesto de Araripe estaria alinhado na criação niilística de Tristan Tsara, o poeta do dadaísmo.  O dadaísmo encantou a Salvador Dalí, que até pintou, por puro exibicionismo egoísta, ou não, a sua Gala. Mas Gala era a sua mulher, com a qual ele anunciava ter relações tão intensas, finalizadas depois com aquele balbuciar primevo da infância: dá, dá, dá. O dadaísmo, o nada, que a tudo servia, até mesmo para o gozo sexual e o abstracionismo da sua arte e da sua vida. O nosso dadaísta, - sem nenhum trocadilho infame- Araripe Coutinho, é artista atemporal, ele se permite cometer, ou aventurar-se por aventuras insólitas, neste século onde a poesia some sufocada pela pragmática objetividade que a realidade exige. Há de admitir o poeta, todavia, que o governo cujo titular pode até compreender essas ousadias, a elas não poderia ser indiferente. Por dever legal está preso a um juramento, cujo conteúdo em grande parte é determinado pelo senso comum, exatamente aquilo que inspirou revolucionários ingleses. Tendo executado um rei antes que os franceses o fizessem, eles resolveram elaborar e seguir normas não escritas para a boa convivência democrática, que serviram de modelo a uma boa parte do mundo.
Além do mais, há quem garanta que no dia ou na noite em que se fez o apressado ensaio, ao ver o seu palácio invadido por quem ele chamaria de pederasta, o general interventor Mainard Gomes se pôs a gritar para o seu companheiro de rebeldias revolucionárias: Soarino, Soarino, pegue um rebenque, corra ali e dê umas bordoadas naquele moleque desavergonhado.  Depois se fez o silêncio. O general Interventor voltou à sua realidade, entendeu que estava em outro plano.
Mas, sem os compromissos do ritual, das liturgias do poder que exigem e impõem respeito aos símbolos do Estado e da República, sejamos condescendentes com o poeta, autor de tantos livros, ele mesmo, junto com outro poeta, Mário Jorge, que se foi aos 27 anos, os dois únicos sergipanos primorosos fazedores de poesia, que estão a merecer, como personagens centrais, duas teses elaboradas por doutorandos na UFS e na UNIT.
Façamos então uma subscrição pública para que o poeta Araripe, no auge da fama de homossexualismo performático por ele iniciada, possa ir a Paris. Lá encher os lábios de um untuoso e resplandecente carmim, e no cemitério Père Lachaise deixar gravado no mármore branco do túmulo de Oscar Wilde o seu comovido beijo, repetindo um gesto que centenas de milhares de pessoas já fizeram, homenageando o gênio homossexual vítima dos preconceitos do seu tempo.              

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