O VELHO AS CRISES E A
ANÁGUA DE ENTRETELA
A criança ouviu, sem muito entender, no rádio branco de fabricação suíça o Repórter
Esso, em edição extraordinária, anunciar que a Alemanha se rendera. Na Europa a guerra ( 1939- 1945) acabava. Era a manhã de 8 de maio de 1945. Logo, a
festa nas ruas, a revoada de aviões, o sino da catedral e o foguetório,
marcavam o fim da sacrificada e heróica crise da guerra. Meses depois, o retorno de parentes . Eles voltavam com as cicatrizes do sofrimento, e o
riso largo de vencedores.Lutaram contra ditaduras, e aqui, um ditador os
recebia.
Viria, depois, a crise
logo superada da deposição do ditador . A criança não compreendia aquelas
coisas, só soube que Getúlio Vargas deixara de ser tão importante, porque o pai
que ao ir ao sanitário sempre dizia: ¨Vou enviar um telegrama ao Getúlio ¨,
naquele dia, lamentou, porque o ¨ telegrama ¨ não teria mais destinatário.
Meses antes, a criança sentira o que era de fato a crise permanente de uma
ditadura . Foi quando o pai sumiu , sem que lhe dissessem para aonde ele fora.
Pressentia que algo estava errado. A mãe escondia o choro e as pessoas
apenas murmuravam a esconder, dele, que o pai
estava preso.
O adolescente ouviu,
agora no rádio potente da radiola Standard- Electric , outra vez pelo Repórter Esso em edição
extraordinária, a noticia: ¨ O presidente Getúlio Vargas matou-se com um tiro
no peito. ¨ Em seguida, Heron Domingues lia a Carta Testamento.
Era a manhã de 24 de agosto de 1954. O menino, que hesitava entre leituras de um volume condensado de O Capital,
as Seleções do Reader`s Digest, e o
anarquismo difundido por um jornal de periodicidade incerta, editado na Costa
Rica, o El Sol, ficara, também, fascinado com o discurso moralista de Carlos
Lacerda, as denúncias sobre o ¨ Mar de
lama que corria nos porões do Catete ¨, e, até torcera para que a mazorca da ¨ República
do Galeão ¨ consumasse o golpe
contra o presidente eleito, e no último ano de mandato. Entendeu, então, que daquela
vez Getúlio fora a vítima . Lutava por um projeto consistente e
transformador de desenvolvimento econômico e social em bases nacionalistas, com
plena soberania sobre nossos recursos
naturais, e isso desagradava às elites econômicas e políticas , também militares, que viam comunismo por todo
lado. Não tardou, o adolescente estava no meio daquela horda de raivosos que encheram as ruas, armados de paus e
pedras, vingadores de Getúlio, ¨ o pai
dos pobres ¨. Houve tiros, um trucidamento,
feridos. O menino logo voltou para a casa com testa sangrando, e a convicção de que Getúlio
fora vítima de uma conspiração dos
inconformados com o progresso social. Abominou Lacerda, nunca mais leu Seleções. A crise amainou, mas
tornou-se cíclica.
Meses depois, a crise da ¨ novembrada .¨ Os tanques saíram da Vila sob as ordens do Ministro da Guerra Teixeira
Lott, que pôs em fuga o fantoche presidente da Câmara, Carlos Luz. Ele assumira
a presidência depois da ¨ doença
cardíaca ¨ do vice presidente Café Filho, que preferiu transferir a
responsabilidade pela ruptura institucional ao presidente da
Câmara , um golpista, mas não cínico,
farsante e mentiroso, tipo Eduardo Cunha. Do Ministério da Guerra saiu a
explicação canhestra para o golpe: Fora
feito para ¨ reconduzir o país aos quadros
constitucionais vigentes ¨. Assim,
Juscelino, um dos nossos raros Estadistas, eleito com menos de 40 % dos
votos, numa eleição com 5 concorrentes e
sem segundo turno , teria a posse
assegurada. O adolescente festejou o desfecho da crise, no Atheneu, sob os
olhares severos, todavia tolerantes, do diretor Padre Mendonça, que parecia não
estar gostando nada daquilo. Naquela
noite de 11 de novembro em que o pai,
cercado de amigos comemorava o aniversário,
também erguendo brindes ao general
Lott e à sua ¨espada legalista ¨, o adolescente teve direito a uma
só dose de uísque,a primeira, a quebra da virgindade alcoólica. A outra, seria
quebrada meses depois, pela condescendência de uma recatada senhora. Ela apertava numa das mãos o
terço que acabara de dedilhar na última noite festiva de
encerramento do Congresso Eucarístico, na Praça da Bandeira, em cujas redondezas,
escuras, transcorreu a ¨ crise ¨ das anáguas de entretela engomada,
sob a comprida saia de seda branca .
Felizmente, sem traumas posteriores.
Daí em diante, crises sucessivas, mas o Brasil
entrava no ritmo trepidante de progresso , otimismo ,
criatividade. Tempo da Bossa Nova, da Garota de Ipanema, do
biquíni, da ascensão da mulherada rebelde a demolir preconceitos, da SUDENE,
dos carros nacionais, de Brasília, também, das rebeliões de Jacareacanga, Aragarças , dos desatinos verbais de Carlos Lacerda,
enquanto Prestes passeava livre pelas
ruas do Rio de Janeiro. JK preservava a
democracia, sendo tolerante, anistiando os rebelados para poder dar ao
Brasil 50 anos de progresso em 5 de mandato , tal como prometera.
Veio Jânio com a
sua vassoura tresloucada ,
novo símbolo de uma crescente classe
média, sempre disposta a acreditar nos ídolos
ôcos de pés de barro.
Janio renunciou. Estava de porre, e ai a crise foi feia.
Beiramos a tragédia de uma guerra civil.
Então o adolescente já era homem.
Depois de muito espalhar panfletos pela cidade, e
ir dar plantão na Prefeitura
ao lado do prefeito Conrado, que resistia ao golpe, terminou coercitivamente, ( palavra da moda ) levado ao quartel do 28 º BC, para ouvir, na
madrugada, sob a luz intensa de holofotes na cara, os ¨ conselhos ¨ do coronel
Bragança. Viu a crise terminar com a
habilidosa solução do parlamentarismo, evitando-se o derramar de sangue, mas
não se conformou com o que entendia como ¨acomodação burguesa.¨
Depois, a crise mais
longa, a iniciada em março de 64. O jovem tentou algumas ousadias, claramente
insensatas . Começou o período autoritário, a manutenção pela força de um estado
permanente de crise. E a saída se fez pelo esgotamento de um modelo que os
principais chefes militares reconheceram ser impossível manter, quando a sociedade dele se mostra
antagonista.
O impeachment de Collor , foi, antes desta, a crise maior após
a redemocratização. Então,
o jovem já não era tão
jovem, todavia, entusiasmou-se, juvenilmente com os ¨ caras- pintadas ¨. Collor, havendo perdido a arrogância, montara um ministério de pessoas ilibadas e capazes,
assim, deveria ter concluído o mandato.
Os cabelos brancos, as rodadas pelo mundo , a vida vivida, com a ânsia de aprender, de agir, de não ver simplesmente o tempo
passar na janela, fez o velho concordar com Raul Seixas, ¨ preferindo ser uma metamorfose ambulante,
do que ter idéias velhas sobre tudo.¨ O velho votou em Lula várias vezes, em
Dilma duas. Na ultima, já descrente, mas, com uma ligeira esperança, logo
desfeita com as primeiras atitudes da presidente.
Por isso, o velho que
nunca foi prisioneiro de dogmas, sejam ideológicos ou religiosos,
nesta, que espera ser a última das crises que
atravessou na vida, continua sendo brasileiro esperançoso, acreditando que o bom
senso vai prevalecer, e Temer, que inevitavelmente será o sucessor de Dilma, embora de forma traumática e duvidosa, consiga
condições políticas para superar o
trauma e a crise, desde que não se faça refém do calhorda, gatuno e salafrário
Eduardo Cunha, e de tantos outros iguais a ele, e dele aliados, e entenda que o
Brasil é maior do que partidos ou ambições pessoais. Por isso, se faz imperioso
um acordo, um pacto, uma acomodação, ou seja lá o que for, contanto que se evite a escalada dos radicais. O Brasil
precisa de esperança, confiança e paz,
para construir um projeto que englobe geopolítica e, sobretudo, a nova forma de
protagonismo , que é a geoeconomia, a afirmação do poder
através da capacidade de produzir, de inovar, de compatibilizar progresso com
meio ambiente; de unir a criação da riqueza à necessidade de bem
redistribuí-la. Somos, na essência, um povo generoso, e temos tudo para, nos
próximos 20 anos, figurar entre as cinco maiores potencias globais, com o traço
característico de tolerância multirracial e multicultural, que nos faz
diferenciados pelo exemplo. Poderemos, entre os vizinhos, exercer uma hegemonia benevolente, influindo, sem
impor nem dispor, e projetando nossa capacidade de viver e de conviver pelo
mundo. Essas coisas, sabemos fazer muito
bem. Criatividade e jeitinho não nos faltam, mas, precisamos voltar a crer no
Brasil, e em nós mesmos. Que o impeachment, não se transforme em caça às bruxas. Uma
democracia não se consolida vomitando
preconceitos, como esse, agora
recorrente, de que um partido ou partidos, se transformaram em pragas, e que é
preciso exterminá-los. Como sensatamente
disse FHC , partidos só crescem ou se extinguem através de eleições. O Brasil
será maior na medida em que for mais justo , assim, Bolsa Família
é
irremovível enquanto durar a miséria, e para acabar com ela não há fórmulas milagrosas,
como a estatização de tudo, a expropriação dos ricos, a eliminação do
agronegócio, ou revoluções, muito menos a adesão incondicional ao mercado, ao
cassino financeiro global. Finalmente, é preciso que se tenha bem claro, que direita,
centro, esquerda, são parcelas inseparáveis do jogo político democrático , e
devem se revezar tranquilamente no poder, sem que
isso cause convulsões, até porque, com essa rotatividade, os extremos, tanto
da direita como da esquerda,
estarão neutralizados.
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