sábado, 3 de outubro de 2015

CARTA AO JUIZ QUE CONDENOU O FREI ENOQUE A 16 ANOS E 6 MESES

CARTA AO JUIZ QUE CONDENOU O
 FREI ENOQUE A 16 ANOS E 6 MESES
Permita-me, senhor Juiz, levar-lhe essas considerações, e, se assim as faço  públicas, é porque públicas sempre foram, por conseqüência  do ofício, todas as minhas manifestações, sempre  completadas pelo nome que nelas imprimo, traduzindo a responsabilidade que, há mais de 50 anos, pelas linhas que escrevo sempre assumi.
Faço- as com o respeito que devoto a Justiça, não apenas por querer ser fiel  à memória de um pai e a de um avô, operadores da Justiça que, eles próprios, em tempos diversos e adversos, lhes viram faltar, quando o arbítrio desembestou-se  em persegui-los; mas, também, por ter sentido  na própria carne, e em outro tempo, o opressivo e insuportável peso da ausência das leis, que o arbítrio suprimiu.
 Por não ter  a honra de conhecê-lo pessoalmente, imagino que o senhor seja um jovem magistrado, incendiado por aquele virtuoso sentimento de fazer cumprir a lei, diante da qual  todos se devem igualar. Imagino, também, que o senhor, por ser jovem, não viveu um tempo historicamente recente, quando,  ao desamparo da lei suprimida, tantos foram jogados em cubículos, porque o autoritarismo dominante assim o queria. Mas o senhor poderá aquilatar o silencio mudo do desespero daqueles, órfãos da cidadania que lhes foi roubada.
 Portador dessa sensibilidade, o senhor mesmo, consciente de que tomou a decisão acertada, poderá fazer uma idéia daquilo que se estará passando na cabeça de um homem  ao transpor as portas de uma Penitenciária sentindo  o dorido acicate daquele cilício torturante da dúvida sobre a justiça dos homens, e querendo sustentar a esperança de que o Deus em que ele crê, lhe cobrirá de indulgências, porque, se Ele existir, e se Ele estiver pressurosamente a acompanhar o que fazem os homens,  saberá, que aquele homem pobremente vestido, se fez, todavia, ricamente ornado daquela virtude  que um Seu mensageiro quis, sem muito sucesso, espalhar pela terra, quando ensinou: Amai-vos uns aos outros.
Aquele homem que o senhor condenou, senhor Juiz, errou sim, por  acreditar que a solidariedade devida aos que sofrem, seria mais   importante do que os rituais exigidos pelas formalidades da lei.
Aquele homem que o senhor condenou, senhor Juiz, se fez portador da santificada ascese de quem  quer seguir o mandamento primeiro, o ¨amai-vos uns aos outros ¨, que a sociedade  da competição, do egoísmo e da sofreguidão consumista há muito tempo relegou ao quase esquecimento.
Aquele homem que o senhor condenou , senhor Juiz, errou, ao imaginar que a  pureza moral, a  aversão aos bens materiais, seriam suficientes para justificar os seus atos, e errou ainda mais , ao supor, com a ingenuidade dos crédulos, que todos os que o rodeavam, seriam portadores, ou pelo menos seguidores  dos sonhos sublimes que ele acalentava.
O homem subjugado  , humilhado e destruído por ter naufragado  no sonho etéreo de uma Justiça inconsútil, ao entrar na Penitenciária à qual o senhor o condenou em nome de uma Justiça concreta, real, deixa atrás de si o rastro esperançoso de uma caminhada, a ¨ caminhada da cidadania ¨ que, se não pôde modernizar a arcaica e sufocada economia do miseravelmente pobre Poço Redondo, conseguiu, porém,  dar vida pulsante a um benfazejo embrião de  sentimentos de auto-estima  , cidadania e solidariedade,  traduzidos em atos como as doações  feitas pelos pobres, todos os meses, para amenizar carências,  tais como a incapacidade do poder público para manter um hospital.
 Ficou, também, dessa caminhada, o exemplo de um um missionário jovem que chegou  ao sertão sergipano calçando as sandálias rústicas dos franciscanos.  Para ele , ainda hoje, simbolizando  muito mais do que um voto de pobreza feito na já distante juventude, quando deixou um curso de Direito no Recife para tornar-se apóstolo de uma verdade  pela qual suportou e suportará todos os sacrifícios. A verdade, fanal, bússola e caminho  da sua vida. A verdade que  se fortalece na fé, e numa crença firme na capacidade que teria o homem para construir um mundo solidário. E, mais ainda, alcançar o milagre de uma utópica igualdade.  Essa, a verdade que o caminhante dos sertões  transformou em objetivo pelo qual já desgastou, tantas vezes, o couro rústico das alpercatas, na peregrinação dura pelas asperezas  de uma terra, por muitas causas e motivos, secularmente martirizada.  Pensando em diminuir esses martírios, telúricos e humanos, o caminhante tornou-se, por três vezes, prefeito,  martirizado também, pela sensação da impotência de quem colocou o sonho largo da esperança bem além do espaço  estreito das possibilidades e das circunstancias.
Talvez agora,  aos 72 anos, condenado a 16 anos e 6 meses de prisão em regime fechado,    numa Penitenciária  , ele nem esteja a sentir  desespero diante do castigo inconcebível, mas, tenha diante dele a vocação e o desejo de vivê-lo, com aquela resignação que só os mártires possuem.
Senhor Juiz, reiterando  a minha impressão de que o senhor agiu convicto de que faria Justiça, digo, todavia, que  a sua rigorosa sentença, para os que conhecem a vida desse homem chamado  Enoque Salvador de Melo, fará surgir, em torno dele, a auréola justa de um mártir.  E aos mártires, senhor Juiz,   a História inapelavelmente  os absolve.
Com respeito, Luiz Eduardo Costa.

PS. Permita-me sugerir-lhe, senhor Juiz ,uma visita sua ao Canion de Xingó,  se ainda não o conhece. Na passagem, detenha-se um pouco em  Poço Redondo, e pergunte aonde fica a casa do Frei Enoque. Haverá muitas pessoas solícitas, oferecendo-se para acompanhá-lo até  a casa procurada. Lá chegando, o senhor  verá como vive humildemente, numa despojada e rústica morada, o homem que o senhor condenou por improbidade. Se assim o desejar,  entre,  é fácil, a porta estará sempre aberta. Se o frei estiver,  logo o atenderá, se o Sport  joga, ele estará na sala da frente, sentado num banco de madeira,  assistindo o jogo e torcendo muito.  A TV colorida foi um presente que ele recebeu de uma pessoa amiga, há   uns 15 anos, para   que aposentasse a branco e preto. Mas , com uma condição: que ele  não leiloasse a TV, como fizera com um relógio de pulso que ganhou de Leonor  Franco. O dinheiro do leilão serviu para comprar comida para os pacientes no hospital. Se ele  estiver à mesa, logo o convidará.  A casa é modesta, o Frei é sempre frugal, mas  a refeição é farta, suprida com os  presentes que o homem condenado recebe. São os frutos da terra,  a ele oferecidos pelos pobres, como ele mesmo. Galinhas, capões, tatus -peba, cajaranas, rolinhas, nambu, mocós,  doces de leite , de umbu, buchada, milho, carne de bode, tucunarés, tilápias e mandins,   ¨cocada ¨de cabeça de frade, compota de ouricurí . A mesa do Frei Enoque, sempre compartilhada, é a própria metáfora da generosidade sertaneja. O senhor se sentirá bem e feliz  se dela participar. 

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