CARTA AO JUIZ QUE CONDENOU O
FREI ENOQUE A 16 ANOS
E 6 MESES
Permita-me, senhor Juiz, levar-lhe essas considerações, e, se
assim as faço públicas, é porque públicas
sempre foram, por conseqüência do
ofício, todas as minhas manifestações, sempre
completadas pelo nome que nelas imprimo, traduzindo a responsabilidade
que, há mais de 50 anos, pelas linhas que escrevo sempre assumi.
Faço- as com o respeito que devoto a Justiça, não apenas por
querer ser fiel à memória de um pai e a
de um avô, operadores da Justiça que, eles próprios, em tempos diversos e
adversos, lhes viram faltar, quando o arbítrio desembestou-se em persegui-los; mas, também, por ter
sentido na própria carne, e em outro
tempo, o opressivo e insuportável peso da ausência das leis, que o arbítrio
suprimiu.
Por não ter a honra de conhecê-lo pessoalmente, imagino
que o senhor seja um jovem magistrado, incendiado por aquele virtuoso
sentimento de fazer cumprir a lei, diante da qual todos se devem igualar. Imagino, também, que o
senhor, por ser jovem, não viveu um tempo historicamente recente, quando, ao desamparo da lei suprimida, tantos foram
jogados em cubículos, porque o autoritarismo dominante assim o queria. Mas o
senhor poderá aquilatar o silencio mudo do desespero daqueles, órfãos da
cidadania que lhes foi roubada.
Portador dessa
sensibilidade, o senhor mesmo, consciente de que tomou a decisão acertada,
poderá fazer uma idéia daquilo que se estará passando na cabeça de um
homem ao transpor as portas de uma
Penitenciária sentindo o dorido acicate
daquele cilício torturante da dúvida sobre a justiça dos homens, e querendo
sustentar a esperança de que o Deus em que ele crê, lhe cobrirá de
indulgências, porque, se Ele existir, e se Ele estiver pressurosamente a acompanhar
o que fazem os homens, saberá, que
aquele homem pobremente vestido, se fez, todavia, ricamente ornado daquela
virtude que um Seu mensageiro quis, sem
muito sucesso, espalhar pela terra, quando ensinou: Amai-vos uns aos outros.
Aquele homem que o senhor condenou, senhor Juiz, errou sim,
por acreditar que a solidariedade devida
aos que sofrem, seria mais importante
do que os rituais exigidos pelas formalidades da lei.
Aquele homem que o senhor condenou, senhor Juiz, se fez
portador da santificada ascese de quem quer seguir o mandamento primeiro, o ¨amai-vos
uns aos outros ¨, que a sociedade da
competição, do egoísmo e da sofreguidão consumista há muito tempo relegou ao
quase esquecimento.
Aquele homem que o senhor condenou , senhor Juiz, errou, ao
imaginar que a pureza moral, a aversão aos bens materiais, seriam suficientes
para justificar os seus atos, e errou ainda mais , ao supor, com a ingenuidade
dos crédulos, que todos os que o rodeavam, seriam portadores, ou pelo menos
seguidores dos sonhos sublimes que ele
acalentava.
O homem subjugado ,
humilhado e destruído por ter naufragado no sonho etéreo de uma Justiça inconsútil, ao
entrar na Penitenciária à qual o senhor o condenou em nome de uma Justiça
concreta, real, deixa atrás de si o rastro esperançoso de uma caminhada, a ¨ caminhada
da cidadania ¨ que, se não pôde modernizar a arcaica e sufocada economia do
miseravelmente pobre Poço Redondo, conseguiu, porém, dar vida pulsante a um benfazejo embrião de sentimentos de auto-estima , cidadania e solidariedade, traduzidos em atos como as doações feitas pelos pobres, todos os meses, para
amenizar carências, tais como a
incapacidade do poder público para manter um hospital.
Ficou, também, dessa
caminhada, o exemplo de um um missionário jovem que chegou ao sertão sergipano calçando as sandálias
rústicas dos franciscanos. Para ele ,
ainda hoje, simbolizando muito mais do
que um voto de pobreza feito na já distante juventude, quando deixou um curso
de Direito no Recife para tornar-se apóstolo de uma verdade pela qual suportou e suportará todos os
sacrifícios. A verdade, fanal, bússola e caminho da sua vida. A verdade que se fortalece na fé, e numa crença firme na
capacidade que teria o homem para construir um mundo solidário. E, mais ainda, alcançar
o milagre de uma utópica igualdade. Essa,
a verdade que o caminhante dos sertões
transformou em objetivo pelo qual já desgastou, tantas vezes, o couro
rústico das alpercatas, na peregrinação dura pelas asperezas de uma terra, por muitas causas e motivos,
secularmente martirizada. Pensando em
diminuir esses martírios, telúricos e humanos, o caminhante tornou-se, por três
vezes, prefeito, martirizado também,
pela sensação da impotência de quem colocou o sonho largo da esperança bem além
do espaço estreito das possibilidades e
das circunstancias.
Talvez agora, aos 72
anos, condenado a 16 anos e 6 meses de prisão em regime fechado, numa
Penitenciária , ele nem esteja a sentir desespero diante do castigo inconcebível, mas,
tenha diante dele a vocação e o desejo de vivê-lo, com aquela resignação que só
os mártires possuem.
Senhor Juiz, reiterando a minha impressão de que o senhor agiu
convicto de que faria Justiça, digo, todavia, que a sua rigorosa sentença, para os que conhecem
a vida desse homem chamado Enoque
Salvador de Melo, fará surgir, em torno dele, a auréola justa de um
mártir. E aos mártires, senhor
Juiz, a História inapelavelmente os absolve.
Com respeito, Luiz Eduardo Costa.
PS. Permita-me sugerir-lhe, senhor Juiz ,uma visita sua ao
Canion de Xingó, se ainda não o conhece.
Na passagem, detenha-se um pouco em Poço
Redondo, e pergunte aonde fica a casa do Frei Enoque. Haverá muitas pessoas
solícitas, oferecendo-se para acompanhá-lo até
a casa procurada. Lá chegando, o senhor
verá como vive humildemente, numa despojada e rústica morada, o homem
que o senhor condenou por improbidade. Se assim o desejar, entre, é fácil, a porta estará sempre aberta. Se o
frei estiver, logo o atenderá, se o
Sport joga, ele estará na sala da
frente, sentado num banco de madeira, assistindo o jogo e torcendo muito. A TV colorida foi um presente que ele recebeu
de uma pessoa amiga, há uns 15 anos,
para que aposentasse a branco e preto.
Mas , com uma condição: que ele não
leiloasse a TV, como fizera com um relógio de pulso que ganhou de Leonor Franco. O dinheiro do leilão serviu para
comprar comida para os pacientes no hospital. Se ele estiver à mesa, logo o convidará. A casa é modesta, o Frei é sempre frugal, mas
a refeição é farta, suprida com os presentes que o homem condenado recebe. São
os frutos da terra, a ele oferecidos
pelos pobres, como ele mesmo. Galinhas, capões, tatus -peba, cajaranas,
rolinhas, nambu, mocós, doces de leite ,
de umbu, buchada, milho, carne de bode, tucunarés, tilápias e mandins, ¨cocada ¨de cabeça de frade, compota de
ouricurí . A mesa do Frei Enoque, sempre compartilhada, é a própria metáfora da
generosidade sertaneja. O senhor se sentirá bem e feliz se dela participar.
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