O ÚLTIMO DOS CONTROLADORES
A
lei de acesso à informação chega tarde no Brasil. Mas enfim chegou, e
para isso certamente tiveram de ser vencidos os obstáculos de uma
secular cultura regida pelo patrimonialismo, que terminou fazendo da
administração pública uma inviolável caixa preta. Somos a nonagésima
nação do mundo a adotar a lei que é fundamental para que o cidadão
comum não continue sendo aquele Zé Ninguém, despossuído total de
direitos, estrangeiro na sua pátria, e sem saber o que fazem dela. A
Suécia, sempre referência na valorização da cidadania, abriu o acesso às
informações há mais de dois séculos, quando criou o instituto do
Ombudsman, um funcionário público com mandato e ampla prerrogativa de
ser intrometido, até para perguntar e exigir respostas do rei, do
primeiro ministro, dos parlamentares. Não ficaram satisfeitos os
suecos apenas com a participação fiscalizadora de um só funcionário
público, e fizeram mais, abriram a todos a possibilidade de, cheios de
direitos, imiscuírem-se naquilo que sempre interessa muito ao cidadão:
saber como está sendo governado, saber o que fazem com o seu país, com o
dinheiro dos impostos que que o governo arrecada. Em grande parte,
essa acessibilidade da população aos negócios do Estado foi
responsável pela evolução social do país. A Suécia é um modelo de
social democracia que funciona, sem ter sido necessário passar por
cataclismos políticos, nem fazer experiências traumáticas como
aconteceu no resto da Europa, que adotou sistemas revolucionários, uns
inspirados em generosas ideias que depois foram desvirtuadas, outros
transformando históricos ressentimentos num manancial imenso de ódio. O
país nórdico não é exemplo único, serve aqui apenas como referência do
aperfeiçoamento político e social alcançado através de medidas que
incentivaram a participação popular, aprofundaram a democracia, tentando
fazê-la, efetivamente, uma forma de governo onde o povo tem uma
presença garantida e fundamental. Na Escócia, registrou-se
recentemente um episódio que, aqui no Brasil, poderá motivar as pessoas
vítimas de um precário atendimento da rede de saúde pública a fazer um
questionamento válido para identificar uma das inúmeras mazelas
existentes. Um escocês que já sofrera danos irreversíveis no seu
corpo em consequência de procedimentos médicos, utilizou-se da lei de
acesso à informação para pedir que o sistema público de saúde colocasse
à disposição de todos uma espécie de prontuário de cada médico,
discriminando, por exemplo, quantas cirurgias ele realizou, e quantos
pacientes morreram ou sofreram sequelas, sob seus cuidados. Houve
inicialmente uma negativa, mas a Justiça determinou que o cidadão fosse
atendido. Depois disso, registrou-se uma sensível redução na cifra de
erros médicos, de falhas, de omissões no sistema de saúde escocês, que
,aliás, opera num elevado nível de eficiência. Caso já existisse
uma lei de acesso à informação no Brasil, há cerca de 50 anos passados,
coisa absolutamente inimaginável, se teria evitado em Aracaju a
calamidade de óbitos em cirurgias, que se verificava no Hospital Santa
Izabel. Àquele hospital, chegavam as poucas pessoas pobres do
interior que conseguiam atendimento. Depois de alguns exames básicos,
eram imediatamente operadas, e mais de trinta por cento morriam na
sala de operações ou logo depois. Um cirurgião recém- formado chegou
ao Santa Izabel, e ficou alarmado com as cifras da mortalidade. Era
Francisco Rollemberg, que passou então a exigir exames mais detalhados
em todos os pacientes pobres vindos do interior. Descobriu-se, então,
que quase todos sofriam de anemia profunda, causada por má nutrição ou
fome crônica. Antes da cirurgia todos começaram a ser submetidos a uma
alimentação mais completa, recebiam medicamentos durante algum tempo .
Somente depois disso as cirurgias eram realizadas. Houve uma queda
vertiginosa na mortalidade, o que se deve também , certamente, à
habilidade já então revelada pelo jovem médico. A Lei de Acesso à
Informação é assim, em primeiro lugar, um instrumento eficaz de defesa
dos interesses de toda a população. Com esta nova lei não se poderá
garantir que a corrupção estaria vivendo os seus últimos dias, mas, sem
dúvidas, a fiscalização direta exercida pelo povo criará uma barreira
para os que se habituaram a manipular como bem entendiam os cofres
públicos. O povo passa a partir de agora a ser um agente ativo de
fiscalização, assumindo o papel do último dos controladores, ou seja,
aquele que pode pedir e exigir que sejam fornecidas informações pelos
três poderes, inclusive dos que controlam esses três poderes, como as
Controladorias Gerais, os Tribunais de Contas e o Ministério Público. Resta agora esperar que cada cidadão saiba utilizar-se da prerrogativa nova que a lei lhe confere.
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