sábado, 18 de junho de 2011

RETALHOS DE UMA VIAGEM O FIM DOS TOVARISH (4)


Em 1963 realizou-se no Rio de Janeiro, no amplo espaço da feira de São Cristovão, uma exposição sobre os avanços da ciência e da tecnologia soviéticas. Apesar dos coices e relinchos da direita horrorizada com aquela “invasão comunista”, a exposição  transcorreu sem  que se concretizassem as ameaças de bombas terroristas.  Para montar  a estrutura do evento chegaram engenheiros russos  que comandavam uma numerosa equipe de trabalhadores brasileiros. Os técnicos,  todos com carteirinha do  partido comunista, tratavam-se entre si por camaradas,  tovarish, em russo. Era tovarish  prá cá, tovarish  prá lá, e os brasileiros escutando aquilo , e então, entenderam que todos os gringos chamavam-se Tavares, e assim passaram a chamá-los. Um correspondente do jornal Pravda acompanhava toda aquela movimentação, e mandou um despacho para o jornal que o publicou triunfalmente. Segundo o  correspondente no Rio de Janeiro a revolução no Brasil estava em avançado estágio, o proletariado consciente seguia as orientações do partido, e todos homenageavam os  engenheiros soviéticos, chamando-os,assim mesmo, em russo,  tovarish,  demonstrando, dessa forma, uma elevada consciência internacionalista.
Agora, na ex-União Soviética, a Rússia renascida, com  as cúpulas dos seus templos ortodoxos, azuis, verdes e douradas rebrilhando, parecendo recém construídos,  chamar alguém de tovarish pode ser perigoso.  Desde o fim da União Soviética em 1991  as pessoas se esforçam para esquecer o passado.  Durante todo o mês de maio comemorou-se o fim da Segunda Guerra Mundial, a Grande Guerra Patriótica, como é chamada pelos russos.  Nenhum país entre todos os envolvidos contra o nazismo, naquele conflito sofreu mais e mais duramente combateu os alemães. Nas estepes geladas, onde antes atolada na lama do degelo, esfacelou-se a Grand Armeé de Napoleão, também arrastaram-se, batidas, as  panzer-divisionen de Hitler.  A lama, disse Tolstoi, salvou a Rússia. Ele nem imaginaria que, mais de um século depois, as mesmas cenas se repetiriam, com blindados no lugar de cavalos.  Em uma primavera  surpreendentemente ensolarada, nas ruas de  Moscou e São Petesburgo, nas antenas dos veículos, nos pulsos das pessoas, nas barracas onde se oferecem as “babouskas”, aquelas bonequinhas  gordinhas, uma dentro da outra,  vêm-se  fitas cor de abóbora com listas pretas longitudinais. Pessoas quase sempre idosas, nas ruas entregam aquelas fitas, e o fazem com certa reverencia, tentando também explicar o significado daquilo, mas o russo é ininteligível.  A curiosidade sobre aquelas fitinhas que fazem lembrar aquelas do Senhor do Bonfim,  é satisfeita no anglo-francês de uma senhora elegante, talhe aristocrático, que nos ajuda a desvendar caminhos pelo apinhado metrô,  depois, nos acompanha até o Teatro Bolshoi que está sendo restaurado.  Providenciaram ao lado, em outro teatro menor, a continuação dos espetáculos. Naquele dia, a  ópera Carmen, de Bizet. Chama-se Natália a dama  que tão atenciosamente nos orienta pela cidade ríspida, e onde há inimagináveis perigos para turistas. Ela é de Vladvostock no extremo da Sibéria. Está em Moscou concluindo doutorado em letras, também leva uma fita no pulso e diz  que trata-se de uma homenagem aos  combatentes mortos durante a guerra. Foram mais de cinco milhões, que faziam parte do  vitorioso exército vermelho, mas as cores escolhidas para relembrar  os sacrifícios e a vitória, eram as mesmas usadas nas insígnias oficiais dos tempos do império. Os russos exaltam as conquistas científicas, o pioneirismo no espaço, os feitos heróicos, mas , recusam-se a relacioná-los ao período comunista.
Esse apagão  da História se faz paralelo a  um retorno saudosista ao passado, talvez uma busca de valores, de referencias perdidas momentaneamente, por um povo que sofreu um colapso ético no momento em que desmoronou toda a estrutura da economia estatal, e a privatização se fez entre quadrilhas que partiram para o assalto, apossando-se do que era coletivo,  gerando  ilusória igualdade e um totalitarismo real.
Na Rússia  que freneticamente vai enriquecendo, não há mais lugar para os tovarish. Não há mais ” camaradas”, há competidores empenhados numa competição feroz. Os comunistas envelheceram, e o comunismo tornou-se algo distante, anacrônico, para uma gente que parece obcecada pela corrida de obstáculos, sejam quais forem, em direção ao dinheiro.
Mikhail Gorbatchev, o último comunista no poder, quando lançou a  perestroika e a glasnost,  (reestruturação e transparência), advertiu que o regime e a própria União Soviética correriam o risco de desaparecer, caso não fossem implementadas as  transformações na economia, paralelas à reforma política.  A tsunami social  levou tudo de roldão.  Gorbatchev caiu, e os velhos comunistas  que não conseguiram concluir a rápida metamorfose para continuar no poder, devem estar fazendo uma espécie de justificação íntima para os erros que cometeram, as ilusões que espalharam,  a crença equivocada na eficácia da repressão para manter um regime que apodreceu.
 Os escombros da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas perturbam, causam uma  certa confusão na mente de quem viu, naquele modelo fracassado , uma esperança para o mundo, e passeia agora pela Moscou das máfias, com a suspeita de que a realidade de  hoje é, também, uma espécie de herança indesejada.
 Mas há uma justificação e uma espécie de consolo na ingenuidade da convicção, que o filósofo esloveno  Slavoj  Zizek tão bem define: .....”um personagem trágico bastante conhecido da época da Guerra Fria: aqueles esquerdistas ocidentais que enfrentavam heroicamente, com total sinceridade, a histeria anticomunista em seus países. Dispunham-se até a idem presos por suas convicções comunistas e pela defesa da União Soviética. Não é  a própria natureza ilusória de sua crença que torna essa postura subjetiva tão tragicamente sublime ? A realidade miserável da União Soviética stalinista torna ainda mais majestosa a beleza frágil dessa convicção íntima. “

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