O aeroporto de Sherement é amplo e está tinindo de novo, rebrilha seu chão de mármore branco. Mas, às três horas da tarde de uma terça-feira parece deserto. Não há pontos de informação turística. Junto à porta de saída aglomeram-se homens desmazeladamente vestidos. Deles exala um forte cheiro de álcool. São taxistas, e cercam os poucos passageiros oferecendo-lhes seus serviços, começa a negociação do preço da corrida, porque nenhum táxi liga o taxímetro. O que estava em quatro mil rublos termina pela aceitação de mil e quinhentos. Nenhum deles consegue, além do russo, pronunciar três ou quatro palavras em línguas mais acessíveis, e aí a mímica é o único recurso possível. Mas há ainda que confiar na sorte, porque boa parte dos taxistas integra alguma das inúmeras máfias moscovitas, e um assalto é sempre possível. No trajeto até o hotel a enorme surpresa de quem conheceu países do leste europeu antes que desmoronassem o Muro de Berlim, e depois, todo o sistema socialista. Nas estradas e ruas predominam os carros de alto luxo, o tráfego é pesado e absolutamente caótico. Há construções subindo por toda parte, as marcas das mais conhecidas multinacionais estão sobre os edifícios. Nos carros luxuosos há na frente, invariavelmente, o motorista e um segurança, requisitos indispensáveis para a nova classe de ricos e bem sucedidos empresários que multiplicam os lucros com a mesma facilidade com que mafiosos acrescentam ao patrimônio o resultado dos assaltos que cometem. A Rússia transformou-se num país repartido entre máfias, e Moscou é a resplandecente e perigosa cidade por todas escolhida para ser a sede dos seus negócios.
Mafiosos e prostitutas sempre formam um binômio indissolúvel em qualquer parte do mundo, e na velha capital dos tzares e autocratas bolchevistas essa simbiose só não se torna ostensivamente visível nos magníficos templos ortodoxos para aonde acorrem fieis em número cada vez maior. Jovens e idosos, mostrando que de nada adiantou a intensa pregação ateísta e a repressão forte às religiões, exercida com maior ou menor intensidade durante os setenta anos que durou o regime comunista.
O começo dos anos sessenta foi um tempo auspicioso para o mundo socialista. A revolução cubana encantava a juventude latino-americana e intelectuais franceses, que sonhavam em reproduzir as façanhas guerrilheiras dos barbudos comandados por Fidel e Guevara; as proezas soviéticas no espaço davam fortes argumentos à esquerda, e principalmente aos partidos comunistas do mundo todo, no embate ideológico que travavam para demonstrar a evidente superioridade do socialismo em face do capitalismo que, segundo a análise marxista, estaria atravessando a sua fase final,
e logo, vitimado pelas suas próprias e insuperáveis contradições, seria definitivamente sepultado pelo proletariado revolucionário que conquistaria o poder. A Moscou chegavam diariamente representações de todas as partes do mundo, muita gente vinda dos países africanos recentemente saídos da condição de colônias e tornados repúblicas populares.Alguns , exultantes pela grande oportunidade, encaminhavam-se à Universidade dos Povos Patrice Lumumba, de onde regressariam aos seus países, graduados, para exercerem as mais diversas profissões, ideologicamente fortalecidos para a luta revolucionária. O aeroporto de Vnukovo era o único a receber vôos internacionais, e no trajeto até o centro de Moscou os recém chegados se espantavam com a visão de uma extensa favela, bem ao lado da principal rodovia que levava à capital. O espanto era logo desfeito pelos guias que falavam línguas diversas e explicavam que ali, naquela favela, única aliás em toda a União Soviética, viviam os irrecuperáveis, alcoolatras, drogados, vagabundos, que se mostraram resistentes ao tratamento em clínicas especializadas, e preferiam viver naquelas condições degradantes. Para o regime que surpreendentemente os tolerava, sem fazê-los trilhar compulsoriamente os caminhos gelados da Sibéria, eles eram todos classificados dentro daquela visão marxista da sociedade, como “lumpens “, o “lumpen proletariat “, assim escreveram em alemão Karl Marx e Friederich Engels, definindo aquela classe de gente indiferente à luta político-ideológica, e que prefere o isolamento e a vadiagem. Ficavam então satisfeitos os visitantes, absolutamente certos de que a ditadura do proletariado instalada na União Soviética estava, de fato, forjando o novo homem para um novo mundo em construção.
Teriam sido educados naquele tempo aqueles que hoje formam as máfias ?
Na declaração da Conferência Internacional dos Partidos Comunistas,em 1969, um ano antes das grandes comemorações pelo centenário de Vladmir Lênin, constava este texto triunfal: “O nome de Lênin tornou-se símbolo da vitória do Grande Outubro, ( alusão à tomada do poder em outubro de 1918) dos grandes feitos revolucionários que modificaram radicalmente o quadro social do mundo e marcaram a viragem da humanidade para o socialismo e o comunismo. “
Moscou, hoje, é a capital mundial dos bilionários, ali, eles concentram-se em maior número do que em qualquer outra parte. E lá enriquecem mais e mais, todos praticando um capitalismo selvagem, devastador, um vale tudo em busca de dinheiro. A mesma cultura das máfias.
Aquela múmia de Lênin, coisa de extremo mau gosto, exibida num mausoléu dentro dos muros do Kremlin, deve estar sendo maquiada todos os dias, para que não apareça contorcida e desfigurada em espasmos de raivosa indignação incontida
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