terça-feira, 5 de abril de 2011

MARCELO DÉDA, O CACIQUE


Cena rara, quase inusitada, um governador desembarcando de precária canoa na ilha de São Pedro. Com seus cocares coloridos, suas maracás barulhentas, corpos vistosamente pintados, os Xocós acompanhavam o desembarque. Mas, o ritual das vestes e dos cantos não era de guerra. Eles agora eram os anfitriões na terra que duramente conquistaram. E aquele governador que chegava, fora o quase menino que estivera ali, há tantos anos, acompanhado por outros estudantes, seguindo os ensinamentos e os passos de um grande bispo, Dom José Brandão de Castro, dando força para uma resistência que era desigual, vista na ocasião com todos os preconceitos que ainda cercavam a luta dos índios, a luta dos negros. E ainda mais: Vivíamos sob uma ditadura que tinha visceral mau humor a tudo o que se relacionava com movimentos sociais.
Na igreja restaurada, Déda fez emocionado discurso. Logo depois ele era feito cacique. Sobre sua cabeça os chefes tribais colocaram, solenes, o cocar e lhe entregaram a borduna de chefe. E Déda dançou o Toré sob os olhares que pareciam ser de aprovação de Dom Mário, o Bispo de Propriá. Acompanhavam a cena, velhos e novos lutadores pela dignidade humana, o deputado estadual João Daniel, líder do MST, o deputado federal ambientalista, Márcio Macedo, o prefeito de Porto da Folha, Manoel de Rosinha, que tinha naquele dia motivos de sobra para sorrir, pois seriam muitas as inaugurações de obras no seu município, começando por aquela igreja. Segundo o professor Luiz Alberto, zeloso guardião do patrimônio histórico, trata-se de uma das mais antigas construções no baixo São Francisco, felizmente preservada. Ao seu lado, estão ruínas que datam do século dezesseis.
Depois, enquanto partilhavam o peixe e a galinha de capoeira que prepararam para os visitantes, os índios lembravam da luta que travaram até viverem agora com dignidade. Hoje, têm escola, posto de saúde. Alguns deles, formados, voltaram para junto do seu povo, trabalham e ajudam dia a dia para que tenham maiores conquistas. Os Xocós aparentam viver felizes, plantam, colhem, pescam, cuidam de preservar as matas, as águas do rio, e, politizados, discutem, são informados, sobre as suas casas há antenas parabólicas, alguns, têm internet. Os mais velhos não perdem a memória do passado, o trabalho que tiveram para manter os seus ritos, conservar seus cânticos, sobretudo vencer os preconceitos de uma Justiça que os humilhou e prendeu, dando claros sinais de que não era assim tão cega, quando se tratava de privilegiar  poderosos.
Os mais velhos conservam bem vivos na memória, os cadernos que sempre acompanhavam a professora Beatriz nos seus estudos, ao mesmo tempo, militância; o bigode farto que o estudante Déda exibia as alpercatas enlameadas e gastas do Frei Enoque, e do dia em que seus representantes foram chamados, e estiveram em palácio. Lá, souberam que um governador,  grande empresário e dono de terras, Augusto Franco, contrariara a corrente conservadora, e desapropriara as terras da ilha, retirando-as dos coronéis proprietários para devolve-las, ainda que não mais integras, aos seus ancestrais verdadeiros donos.

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