O JUIZ MARCEL E O ZAP ZAP ARROGANTE
Em 1970 a Fundação Getúlio Vargas editou no Brasil o livro
Comunicação na Era Espacial, um estudo realizado pela UNESCO sobre as
transformações a partir da nova tecnologia dos satélites. Talvez, pela novidade
da aventura espacial, o livro é pessimista, ou, pelo menos, excessivamente
moderado em relação ao impacto que viria a ocorrer, transformando o mundo
naquela “Aldeia Global” conjecturada por Mac Luhan.
As inovações invariavelmente se chocam com hábitos arraigados
e preconceitos admitidos como dogmas. Quando inventou-se a máquina a vapor,
surgiram reações de grupos religiosos que diziam ser aquela uma “invenção
diabólica”, pois o homem não poderia usar os elementos criados por Deus, no
caso a água e o fogo, para misturá-los, numa bruxaria demoníaca. Esqueciam-se,
talvez, do milenar e prosaico ato de
cozinhar. Daí se inferir, que, misturar ciência com visão fundamentalista é um
sério obstáculo ao progresso.
Apesar do ceticismo da
UNESCO, alguns bilhões de seres humanos se comunicam hoje instantaneamente, e
as redes sociais estabeleceram um novo poder que supera o antes exercido pela mídia
convencional. Daí o medo que regimes fechados e obscurantistas têm da Internet,
embora a utilizem para os seus propósitos, como é o caso do Estado Islâmico e
da Coréia do Norte.
Essa nova realidade conduz a uma necessária reflexão sobre
aonde podem ir os limites para o uso do ciberespaço. Se, por exemplo, os
conceitos de cidadania e privacidade seriam suficientes para justificar as
atitudes do Whatsapp, negando à Justiça
acesso à mensagens trocadas por traficantes.
O Juiz de Lagarto Marcel Montalvão é um discreto e comedido
magistrado. Ele tem uma exemplar história de vida. Deve ter meditado muito e muito também
tolerado as arrogâncias do Whatsapp, antes de tomar a drástica decisão de
suspender o aplicativo por 78 horas. Da mesma forma, o sempre criterioso
desembargador Cezário Siqueira,teria mergulhado fundo nas suas convicções, no
seu consistente lastro jurídico, para dar a decisão confirmando a liminar do
Juiz.
Sobre o assunto ainda não se tem uma legislação pertinente e
ampla e há enormes e justificáveis controvérsias. A punição estendendo-se além
da própria empresa desobediente e atrevidamente desafiadora, criou problemas
para milhões de pessoas, afetou algumas atividades econômicas. Baseando-se nessas conseqüências, o também
criterioso desembargador Ricardo Múcio ateve-se apenas ao efeito prático produzido,
e suspendeu a liminar.
Essa questão do uso e do abuso do ciberespaço é complexa,
ainda dará motivos a muitos entrechoques de idéias. É normal e salutar que isso
aconteça, até porque, onde se estabelece um espaço imenso para dúvidas e
contestações, é difícil dele extrair verdades conclusivas.
O que não se pode
admitir é essa estúpida carga de ofensas e agressões ao Juiz. Da mesma forma é
impensável que o Conselho Nacional da Magistratura venha a abrir sindicância
sobre a atitude do magistrado. A Justiça brasileira estaria amesquinhando-se
diante do poderio arrogante de uma empresa sem a menor consideração às
instituições do país onde põe os tentáculos.
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