sábado, 23 de fevereiro de 2013

A HISTÓRIA VIVIDA, A HISTÓRIA RELEMBRADA



A HISTÓRIA VIVIDA, A HISTÓRIA  RELEMBRADA


Era uma sexta-feira de Carnaval. O dia, 20 de fevereiro. O ano, 1976.

O Brasil iria viver o seu décimo segundo carnaval desde que a ditadura começara .

O jornalista Elio Gaspari  escreveu o mais completo e elucidativo trabalho sobre o período da chamada Revolução de 1964. Ele o dividiu em 4 fases.  Intitulou a primeira delas  de  ditadura envergonhada. Naquele carnaval vivíamos  o  fim do segundo período, o da ditadura escancarada.  O quarto presidente do ciclo militar,  general Ernesto Geisel, acenara com uma distensão que definiu  como lenta, gradual e segura.  Nos grandes centros a mordaça nos veículos de comunicação já havia sido parcialmente retirada. Na periferia, como aqui em Aracaju, por conveniência ou medo, a mordaça permanecia.

No núcleo do poder  confrontavam-se duas tendências: a moderada que seguia a estratégia  de cauteloso retorno à democracia e restabelecimento  do poder civil, tudo sob a tutela militar, e a outra a extremada de direita, feições marcadamente fascistas, representada no Ministério do Exército pelo general Sílvio Frota,  e na Ministério da Justiça por Armando Falcão.

 A chamada  ¨linha  dura ¨andava insatisfeita, quase rebelada contra o andamento da distensão política, o tímido retorno da liberdade de expressão. Em janeiro de 76 o general Sílvio Frota dirigia ao Ministro da Justiça  um ofício  insolente,  Aviso 13/4, na linguagem castrense,  que assim começava : ¨Há dois ou três dias venho pedindo  a Vossa Excelência enérgicas providências contra a imprensa e, em particular, a de São Paulo, que, através de artigos violentos, injustos e revoltantes, tem procurado lançar o Exército contra o governo  e desmoralizar um dos mais insignes Chefes, movimentado, por necessidade de serviço, em virtude de decisão presidencial. Não obstante as providencias que, estou convicto V. Exa tomou, esta campanha difamatória prosseguiu hoje no jornal FOLHA DE SÃO PAULO, agora em termos ultrajantes ao Exército.¨

O  ¨ insigne chefe¨  que a imprensa estaria a desmoralizar, segundo o rude e indisciplinado texto do Ministro do Exército, era o general Ednardo D`Avila Mello, nascido em Sergipe, que fora exonerado do Comando  por determinação do presidente Geisel após as torturas que causaram as mortes  do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho  em dependências do II Exército.

 A  Operação Cajueiro começou em Aracaju naquele início de tarde da sexta-feira, 20 de fevereiro. Três  dias antes, chegaram ao quartel do 28 BC os  torturadores comandados pelo Tenente-Coronel Oscar Silva.    O comandante,  coronel Osman de Melo Silva foi afastado, da mesma forma quase toda a sua oficialidade e sargentos, para que só os  esbirros desumanos transformassem um quartel do Exército Brasileiro numa masmorra  onde todos os vilipêndios ao gênero humano foram permitidos.

 Estudantes, operários, servidores públicos, professores, advogados, agrônomos, foram sequestrados nas ruas, nas suas casas, nos locais de trabalho, e levados para a prisão. Tratados como se fossem perigosos marginais, eram  supostamente filiados ao proscrito   Partido Comunista Brasileiro, uma organização de esquerda que sempre se manteve afastada da luta armada.

O braço repressor do general Fiuza de   Castro, comandante da Sexta  Região Militar, chegava a Sergipe como parte de uma estratégia montada no Ministério do Exército para  lançar a ¨linha dura ¨militar contra o presidente Geisel , frear a  distensão política e levar ao poder o general Sílvio Frota.

Aracaju, pequena capital nordestina, tornava-se palco do choque entre duas concepções de poder,  a autoritária,  da maior parte das forças armadas, e a totalitária,   abrigada nos bunkers radicais conquistados pela linha dura,  tendo  como mais poderoso aliado o próprio Ministro do Exército, também aspirante à sucessão de Geisel.

Quarta-feira passada, dia 20, 37 anos já nos separavam  do inicio da Operação Cajueiro. Reuniram-se para um jantar o vice-governador Jackson Barreto, o ex-prefeito de Aracaju ,  João Augusto Gama, o Secretário de Comunicação do Governo,  Carlos  Cauê,  Rosalvo Alexandre , Marcélio Bonfim , esses dois últimos, símbolos da resistência, presos e torturados em 76.  Havia ainda um jornalista contemporâneo dos fatos.

Sobre  aquele último arreganho violento da ditadura em Sergipe existem ainda pontos obscuros a identificar e esclarecer.

Jackson, na época deputado estadual, e um dos mais visados pela repressão por ter sido eleito recebendo votos do proscrito Partido Comunista,  e  por ser, também,   uma liderança popular em plena ascensão, foi por várias vezes levado a depor no quartel. Havia, segundo ele, o claro propósito de exagerar a influencia das esquerdas no processo político,  construir o  fantasma ameaçador da rearticulação comunista e ganhar o apoio da sociedade para um golpe militar patrocinado pela linha dura.  No quartel, Jackson ouviu de um major a advertência ríspida: ¨Deputado, aqui se fala o que se quer e também o que não se quer falar ¨.

Jackson atravessou aquele período tenebroso enfrentando o risco iminente de cassação do seu mandato,  e assim  continuaria nos embates seguintes pela redemocratização do país, até o final da ditadura em 85. Aquela história de vida, e  currículo político, lembrados e exaltados pela presidente Dilma, ao saudar Jackson durante a inauguração da ponte Gilberto Amado.

Naquele jantar não havia somente reminiscências, mas, também  o propósito de clarificar episódios  relacionados à Operação Cajueiro,  fazendo-se a montagem precisa da  motivação, da sequencia dos fatos, da cadeia de comando,  desde  os tapetes das salas de  quarteis generais, ao chão encardido da masmorra onde escorria o sangue dos torturados. Essa, segundo  Jackson Barreto, será uma tarefa para a Comissão da Verdade. Sem que se pense em revanche ou execração de quem quer que seja, mas que se construa a História com os capítulos reais e  a responsabilidade exata de cada protagonista. A História não pode ocultar ou fugir da realidade, por mais repugnante que ela seja.

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