Sempre o sergipano ministro a oferecer ao debate suas lapidares frases que, jurídica e também poeticamente, sintetizam a essência da razão nos argumentos que se entrechocam. No julgamento da questão dos fetos anencéfalos, ( descerebrados ) Carlos Ayres de Britto fulminou, sem perder a ternura, e dando irrespondível consistência do que afirmava: ¨Dar à luz é dar à vida¨. Não precisaria dizer mais nada.
Uma questão que envolve saúde, procedimentos médicos, onde, com precisão absoluta, a ciência comprova que não existindo o cérebro não existe a vida, foi transformada num conflito, com as fortes e quase sempre irracionais marcas dos dogmas religiosos. Surgiram argumentos à sombra de uma visão que se foi diluindo no crepúsculo da Idade Média, quando as luzes do Renascimento começavam a clarear os caminhos do humanismo.
No fundo da Idade Média, no cenário europeu, a vida era uma infindável celebração de rituais religiosos. Dos sinos das igrejas as populações das aldeias recebiam os sinais que comandavam a existência, pontilhada pelas constantes procissões, as missas repetidamente celebradas, os exorcismos para afugentar o demônio, visto frequentemente a rondar os cemitérios. Havia dois grande momentos nas povoações isoladas: a chegada dos pregadores e dos menestréis.
Ouvindo os pregadores, a multidão entrava em transe, debulhava-se em prantos convulsivos, e o sentimento dominante era exatamente manifestado naqueles ritos expiatórios, onde se amaldiçoavam os eventuais prazeres da vida, e até almejava-se encurtar o tempo da existência, para que se alcançasse a gloria do paraíso , a libertação daquele ¨vale de lágrimas ,¨ na definição de Santa Tereza D`Avila, que aguardava, esperançosa, o dia da própria morte. Paradoxalmente, a Igreja Católica que detinha o privilégio do conhecimento, com as bibliotecas que guardava nos seus conventos, e os seus tradutores e copistas que preservavam e multiplicavam o saber , inclusive o científico, aquele Igreja beneficiária do clima e mantenedora das concepções medievais, tornou possível o Renascimento, ao debruçar-se sobre a cultura helênica e aceitar os ensinamentos dos seus filósofos, a cosmovisão, que favoreceu a aventura dos descobrimentos. Quando tornou possível a revelação do corpo humano e estimulou as artes, abrigando nos seus templos, aquilo que antes era visto como sacrilégio e profanação, a igreja sepultou preconceitos e estimulou o pensamento e a criação.
Hoje, tantos séculos decorridos, tantas revoluções acontecidas, tanto progresso social, tantas mudanças e transformações, há certamente que se fazer uma reflexão sobre os novos tempos, mas, sem que seja preciso ir buscar inspiração nas sombras da Idade Média, quando se levavam hereges e bruxas às fogueiras para ¨ queimar o corpo e santificar a alma ¨. E ainda se chama de cruéis e ímpios aqueles Caetés das praias alagoanas que degustaram as carnes do Bispo Sardinha.
Direitos civis, liberdade individual, ciência, não são temas que possam ser tratados na restrita perspectiva dos dogmas. Esse caso específico que acaba de ser decidido com lucidez pelo STF, autorizando o aborto para casos de ausência de cérebro nos fetos, não interfere nas convicções religiosas. Quem é católico, evangélico, ou seguidor de qualquer outra religião, não fica obrigada a interromper a gestação, não há intromissão na liberdade religiosa, da mesma forma, não deveria haver intromissão das religiões num Estado laico, como é o caso do brasileiro. De resto, querer impor a uma mulher que alimente em seu ventre, durante nove meses de dor e angústia um feto sem nenhuma possibilidade de vida, é algo cruel, desumano, um desrespeito à vida da própria mãe. Não se defende a vida, sacrificando-se uma outra.
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