sábado, 4 de fevereiro de 2012

A HORA E A VEZ DE UM HOMEM

Naquela tarde de primeiro de abril de 1964, os que  em Aracaju  sonhavam com um Brasil novo, estavam atordoados diante de um tumulto contraditório de informações.  Havia o prenuncio de cheiro de pólvora no ar. Na noite anterior, os generais Guedes e Mourão Filho, ajudados pela Policia Militar mineira que o governador Magalhães Pinto mobilizara, puseram em movimento uma precária Divisão Motorizada, que descia,  sacrificadamente  pela estrada, varando montanhas, em direção ao Rio de Janeiro. Era o golpe militar que se punha em marcha. No  então estado da Guanabara o governador Carlos Lacerda entrincheirara-se em seu palácio,  enquanto civis armados e policiais tomavam conta das ruas. Da Vila Militar saíram tropas que enfrentariam os sublevados mineiros. As informações desencontradas chegavam de emissoras de rádio captadas com dificuldade. A  Mayrink Veiga, que liderava a Cadeia da Legalidade, dava a versão do governo aos fatos. A sublevação era localizada, em pouco tempo as tropas do Primeiro Exército venceriam os insurretos, o presidente Jango Goulart tinha pleno controle da situação.  Transmitindo de dentro do Palácio da Guanabara, outras emissoras davam versões diferentes. Carlos Lacerda resistia, tropas do Primeiro Exército que aderiam ao golpe puseram para correr os fuzileiros navais do almirante Cândido Aragão. O presidente já havia fugido.
Pela manhã, logo cedo, (ele sempre foi madrugador) o governador de Sergipe, Seixas Dória, chegou ao Palácio das Laranjeiras ( naquele tempo a administração federal ainda dividia-se entre  a antiga e a nova capital). Foi conversar com o presidente Jango e reafirmar sua solidariedade. Dele, Seixas recebeu uma missão: No retorno a Aracaju passar em Salvador e conversar com o governador Lomanto Junior, tentar convencê-lo a ficar ao lado da legalidade. Um Avro da Força Aérea foi colocado à disposição de Seixas para a viagem. No deslocamento, do  Laranjeiras   ao aeroporto Santos Dumont, Seixas constatou que o jogo estava perdido. A polícia de Lacerda já controlava as ruas, e não havia sinais de resistência. Em Salvador, Lomanto hesitou em recebê-lo,  e quando o fez,  foi para convidá-lo a assinar um manifesto de apoio  ao golpe, que já trazia redigido nas mãos. Seixas respondeu-lhe com rispidez e retornou ao Avro.
No aeroporto de Aracaju, por volta das quatro da tarde, um grupo de políticos, estudantes e sindicalistas, estava a esperá-lo. Falava-se numa possível resistência armada, contando com uma parte da polícia e a distribuição de armas com o povo.  Acreditava-se que pelo Brasil a fora, naquele momento, estivessem prontos para o combate diversos focos de resistência ao golpe. Seixas desembarca, vai ao fundo do aeroporto com os que o esperavam e faz um relato sucinto e realista da situação. Descreve o que vira no Rio de Janeiro, informa que Jango já deixara a antiga capital, talvez seguindo para Brasília ou o Rio Grande do Sul; acrescenta que o II Exército comandado pelo general Kruel, amigo e compadre de Jango já aderira ao golpe, e que as tropas do I Exercito, posicionadas na baixada fluminense, haviam desistido de combater os revoltosos mineiros. Transmitiu ainda outra noticia: Em  Recife, o governador Miguel Arrais já fora preso pelo IV Exército. Desencorajou a todos os que pensavam em resistência armada e disse que iria ao Palácio reassumir o governo.  Lá,  como era seu dever, aguardaria o desenrolar dos acontecimentos. Era  começo de noite quando ele chegou ao Olímpio Campos. Conversou com Dona Meire, acariciou  os dois filhos pequenos e  retornou ao amplo salão onde estava o vice-governador Celso Carvalho , muitos políticos e alguns militares do exército. Reassumindo o governo, Seixas reuniu-se com  Celso Carvalho, o deputado general  Djenal Tavares, e o comandante interino do 28 º BC, dele ouviu um relato dos acontecimentos,  que não o surpreenderam, e o apelo para que fizesse uma manifestação, aconselhando os sergipanos a permanecerem em calma, e  assegurando que os militares estavam agindo em defesa da ordem e da democracia.
Seixas Dória  tinha 45 anos, uma vida de participação intensa como parlamentar e líder nacionalista. Era um nome nacional,  referencia da esquerda, tendo evoluído ideologicamente do conservadorismo que o fez porta-voz, no primeiro mandato de deputado estadual, das teses mais ortodoxas do catolicismo.  No governo, adotou um comportamento de asceta. Controlador de gastos, deslocando-se numa Rural quase sucateada, hospedando-se no Rio e em Brasília em  apartamentos de amigos,  para não gastar o dinheiro publico que economizava  até com exagerada parcimônia.  Vivia batendo às portas dos ministérios, buscando recursos difíceis para um estado que naquele tempo era  miseravelmente pobre.
 Diante dos coturnos que já ressoavam no piso do palácio com a desenvoltura de novos senhores,   Seixas deve ter feito um rápido retrospecto da sua vida. Não é fácil construir-se um nome, firmar um conceito, ter credibilidade, agir coerentemente, ser leal a princípios, ter e manter o sentimento de honra pessoal. São coisas subjetivas, e cabe a cada um avaliar-lhes a importância. Há quem as despreze, preferindo a vantagem imediata, a acomodação,  até mesmo a pusilanimidade do apego ao poder,  outros, não as trocam pela vida, e esses são poucos, e a esses poucos a Historia costuma registrar-lhes    o gesto, a dignidade, a altivez. Mas, quem pensa na consolação do reconhecimento histórico, quando a vida está ameaçada, quando tudo em volta desaba, quando o destino da própria família é uma incerteza?     Naquela noite de primeiro de abril de 64, Seixas Dória viveu a sua hora, o seu grande momento.  Falava-se até em pelotões de fuzilamento. Gregório Bezerra, líder comunista, amarrado a uma corda havia sido arrastado pelas ruas do Recife, chicoteado por um coronel; o paradeiro de Arrais era desconhecido, depois que militares o retiraram do Palácio das Princesas.
Seixas Dória  ouviu calado o que lhe disse o major Silveira,  em seguida,  chamou alguns assessores, entre eles João Oliva,  e Jose Rosa de Oliveira Neto.  Pediu-lhes que redigissem uma proclamação ao povo sergipano, reafirmando sua fidelidade à Constituição, seu compromisso com a legalidade, sua afinidade com o presidente João Goulart, fez acréscimos do próprio punho. Em seguida convocou o diretor da Rádio Difusora,  Sodré Junior,  disse-lhe para ler a nota , o que foi feito por volta das vinte horas. Sabia que assinava a sua própria sentença, mas, tinha a convicção de que cairia com honra. O pequenino  Seixas Dória, agigantado pelo gesto, assistia à sua volta, por todo o país, multiplicarem-se os pigmeus da adesão e do oportunismo covardes.
 Foi dormir, antes recomendando à sua Casa Militar que instruísse a guarda do Palácio a não resistir  quando chegassem as tropas do Exército. Sabia que seria preso. Em Salvador o coronel Humberto Melo, chefe do Estado Maior da Sexta  Região Militar, que se tornara desafeto de  Dória, andava inquieto,  transmitindo sucessivas mensagens pelo rádio ao comando do 28º BC. Ao ser informado de que o governador reassumira e encontrava-se em palácio, que era também residência, determinou que fossem  prendê-lo, em seguida, viajou a Aracaju em avião militar, e ficou no aeroporto aguardando a noticia da prisão. Os militares chegaram de madrugada, e não respeitaram sequer os aposentos privados do governador, onde ele dormia com a esposa. Quase derrubaram a porta. Seixas só teve tempo  para vestir-se e despedir-se da mulher e dos filhos. Foi metido num Jeep e levado a Salvador. O comandante do batalhão comunicou-se com o coronel Humberto para perguntar-lhe se deveria levar o preso ao aeroporto, e ouviu a resposta mesquinha de uma personalidade raivosa e vingativa: ¨ para ele viajar comigo, no avião? Nunca, ele vai  no Jeep mesmo.¨

 Para os brasileiros humilhados, perseguidos, presos, cassados, demitidos, Seixas Dória passou a encarnar a força moral da resistência pacífica ao arbítrio. Levado a Fernando de Noronha, lá, um militar que se identificou como representante do comando revolucionário lhe ofereceu a liberdade em troca da renúncia ao mandato,  e ouviu a resposta: ¨Coronel, se eu renunciar, a liberdade que me será concedida não apagará da minha consciência a mancha da covardia¨. O militar o olhou com respeito  e apertou-lhe a mão.  Em Aracaju, cercada  pelo exército, a Assembleia cassou o mandato de Seixas Doria, um Ato Institucional lhe retirou os direitos políticos por dez anos. Começou, para uma brava mulher, dona Meire Mesquita Dória, a luta pela liberdade do esposo. No escritório do jurista Nelson Hungria, quando lhe perguntou quanto custariam os seus honorários para patrocinar a defesa do marido, dele ouviu que o pagamento seria a honra de ter lutado pela liberdade de um homem digno.                                 
 Vasculharam a administração de Seixas e nada encontraram que moralmente o desabonasse, e isso os próprios militares reconheceram.
Seixas Dória morreu nessa segunda-  feira,  dia 31, aos 94 anos. A vida longa lhe possibilitou sair do silencioso desespero de um cubículo imundo, para retomar a vida, voltar à politica e a exercer cargos importantes.   Aos 90 anos  veio a glória da reparação plena das injustiças sofridas.  Recebeu em Aracaju, numa solenidade pública, das mãos do presidente Lula, a Medalha do Mérito, maior condecoração da república brasileira. No sepultamento, as honras militares de chefe de Estado, as homenagens do governo e do povo, a expressividade da oração fúnebre feita por Marcelo Deda.
  O grande sergipano, o grande brasileiro, despediu-se, tranquilo e recompensado pela vida.  Completou o sonho.  Lutou, resistiu,   fez História, ajudou a erguer os alicerces de uma Nação livre.

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