OS DOIS HINOS DO NORDESTE
Luiz
Gonzaga era ainda um quase desconhecido estreante no rádio, quando, em
1947 compôs, em parceria com Humberto Teixeira, a música Asa Branca.
¨Quando
olhei a terra ardendo, qual fogueira de São João eu perguntei a Deus do
céu, aí, por que tamanha judiação. Assim começa a letra da música que
se tornou uma espécie de hino não oficial do nordeste.
A melodia é um primor, a letra, o primeiro sofrido grito do sertanejo do nordeste que o Brasil todo ouviu.
Asa
Branca virou música cult, correu mundo, transformou-se , arranjos
diversos deram-lhe feição de jazz, de sinfonia, e até os Beatles
tiveram suas atenções voltadas para a beleza da criação, diríamos, quase
sublime, do nosso Gonzaga e seu parceiro igualmente genial.
George
Moustakis, músico que na Europa se fez porta-voz dos gritos
reprimidos de liberdade nos países latino-americanos sob ditaduras,
entre eles o Brasil, incluiu no seu repertório a Asa Branca, ao lado de
hinos revolucionários de todas as épocas. Março de 2001, em
Barcelona, Moustakis fazia uma apresentação no Palau de la Musik,
assim, escrito em catalão. O velho teatro de linhas clássicas, montado
quase todo em ferro fundido, estava repleto de militantes que haviam
resistido ao fascismo, e naquele mesmo teatro, naquela data, trinta anos
atrás, foram agredidos pela polícia do ditador Franco. Havia entre
eles alguns bem idosos, antigos combatentes na Guerra Civil espanhola (
1936-1939) . Um coro de mais de mil vozes acompanhava sempre as
canções, hinos de guerra dos tempos de luta. Moustakis encerrou a
apresentação tocando Asa Branca, dedicando-a a um jornalista sergipano
que o encontrara antes do show em um restaurante e lhe pedira uma
música brasileira, e ainda, homenageando o escritor Jorge Amado que
estava enfermo e atravessava os seus últimos meses de vida.
O hino do nordeste, como se vê , saiu por este mundo afora.
Há um outro hino, nordestino também, poesia pura, todavia
dramática, distante da esperança, realista, vigorosa para o seu tempo,
e que termina sem ¨os verdes olhos ( de Rosinha) se espalhando na
plantação¨ como na letra de Asa Branca. A família de retirantes depois
da sofrida viagem, sobrevivendo em São Paulo, ¨não volta mais não. É a
Triste Partida, do sublime Patativa do Assarê, que Luiz Gonzaga cantou
e celebrizou. A odisseia do nordestino, batido, derrotado pela seca, é
contada na década dos sessenta, quase vinte anos depois de Asa Branca,
mas aí, já estávamos na ditadura e falar em sofrimento do povo era
subversão.
A música de Patativa do Assarê é agora uma reminiscência
que não traduz mais a realidade nordestina. Houve mudanças para melhor.
Acabou-se o ¨Pau de Arara¨ , os caminhões atulhados de gente como se
fosse gado fugindo da seca, rolando pelas estradas, tentando chegar a
São Paulo. Uma rede de proteção social evita a epidemia da fome e a
região transformou-se na que mais cresce no país. Por aqui, coisa
inusitada, já se registra até carência de mão de obra.
Mas a seca,
fenômeno climático recorrente, continua acontecendo, e com ela estamos
longe de estabelecer um pacto de convivência. Atravessamos agora mais
um período de longa estiagem. Dois anos sucessivos sem trovoadas,
invernos fracos, causaram a pior das situações vividas pelo sertão, que
é a falta de água nos açudes.
O governo federal, que desde o
Império vem construindo grandes açudes pelo nordeste, entendeu que
Sergipe e Alagoas com pequena área incluída no semiárido e às margens
do São Francisco, ficariam fora do programa de açudagem. Temos apenas
um grande reservatório, o açude Duas Barras, em Gracho Cardoso, que
permanece cheio .
Aconteceu a reforma agrária, grandes latifúndios
foram repartidos, e nasceram os assentamentos do MST, todos dependendo
da ocorrência de chuva e desprovidos de um sistema eficaz para
acumulação de água. Cresceu a população sertaneja assistida pelos
programas sociais, e numa boa parte dos assentamentos começou a
desenvolver-se a pecuária leiteira. Então, o suprimento de água para o
rebanho , a alimentação, tornaram-se o grande problema quando escasseiam
as chuvas. Não dá para sustentar boi e vaca pagando tarifa da água da
DESO , impossível também de ser levada por rede de adutoras a todos os
locais.
Houve o reforço emergencial na rede de assistência, com
mais cestas básicas e ampliação do numero de pessoas atendidas pelo
Bolsa Família. A grande dificuldade hoje é levar água em
caminhões-pipa para não deixar que o rebanho morra de sede. Um
caminhão leva em média sete mil litros de água, um rebanho de dez vacas
consome em média seiscentos litros diários, e são milhares de animais
sedentos. Sem água suficiente a vaca não produz leite, mesmo que tenha
uma boa ração.
A grande dificuldade é que, apesar de séculos e mais
séculos de seca, não existe ainda uma estratégia eficaz para adequar a
vida do ¨catingueiro¨ao local onde ele mora, planta, cria e tenta
produzir.
O semiárido sergipano parece ter encontrado sua principal
vocação econômica na pecuária leiteira. Esse é um fato recente, e é
preciso agora que se criem as condições básicas para que a atividade que
deu certo se amplie, sem os percalços dos tempos certos em que a chuva é
incerta.
Há algum tempo o governador Marcelo Déda vem insistindo em
Brasília sobre a necessidade de um tratamento específico para o
semiárido nordestino, para que se desenvolva um projeto capaz de
aposentar definitivamente os carros pipa, indispensáveis ainda, porque
não se fizeram, na quantidade que é necessária, as obras essenciais
para que a seca deixe de ser sinônimo de prejuízo, sofrimento,
desesperança.
Se conseguir alterar o comportamento de tecnocratas
enfiados nos seus gabinetes , apegados a modelos que não se aplicam ao
sertão nordestino, e torná-los mais atentos ao saber eficaz da
¨experiência feita¨ de que já falava Camões no século dezesseis, se
conseguir fazer isso, a presidente Dilma poderá, enfim, desamarrar o
nó que existe em tantos ministérios, e, finalmente, trazer ao semiárido
nordestino as ações que poderão superar os obstáculos do clima, coisa
que em tantos países há séculos já foi feita.
Precisamos fazer com
que a Triste Partida do poeta Patativa do Assarê seja sempre a canção
exaltada e relembrada de um tempo que ficou no passado, e da Asa Branca,
um hino de esperança e vitória sobre a secular adversidade.