segunda-feira, 24 de outubro de 2011

MAIS UM LIVRO DE ALCINO


A noite de autógrafos, na quinta-feira, foi uma espécie de consagração do escritor, daquele que resolveu devassar a beleza, os mistérios, os heroísmos, os sofrimentos, a revolta e a resignação do sertão e dos sertanejos. Alcino Alves Costa estava feliz, autografando o seu mais recente livro,  Lampião em Sergipe. Dezenas de pessoas, escritores, intelectuais, autoridades, amigos, muitos amigos, sertanejos, a maioria deles, uma delas, foi até vestida com a indumentária dos cangaceiros, parecia uma rediviva Maria Bonita; todos, estavam lá para prestigiar o velho pesquisador, o homem para quem os sertões de Sergipe, de Alagoas, de Pernambuco, tornaram-se veredas,  de tão palmilhadas, quase  intimamente conhecidas. Ele sabe onde fica aquela ainda resistente casinha, aquela idosa, aquele idoso, que  estiveram no cenário lampionico,  que viveram, e são, como participantes ou vítimas daquela saga de violências, parte da forja de onde saiu o caráter nordestino.  O livro mais recente, conta, relembra, revive, sobretudo interpreta, com  a sensibilidade de uma sociologia telúrica, a peculiaridade nordestina, aquela que um Ariano Suassuna cultiva, e que historiadores como Alcino  põem  em destaque , seguindo a trilha catingueira que um paulista, Euclides da Cunha,   veio aqui começar em tempos turbulentos,  dos heroísmos e das ingenuidades conselheiristas,  sem esquecer de fustigar os ¨crimes das nacionalidades¨, dos quais, infelizmente, não escapou a nascente República. Euclides deu o rumo. Gente como Suassuna,  e por aqui, felizmente, como Alcino e tantos, tantos outros, anda, nordestinamente,  a seguí-lo.


A VALORIZAÇÃO DA CACHAÇA


Cachaceiro sempre foi um  termo depreciativo. A definição exata para o bêbado pobre, o pinguço que vivia pelos botequins  a tomar aquela bebida barata, demasiadamente popular, para a qual as pessoas de certo nível social sempre torciam o nariz. Bar, restaurante elegante, jamais serviriam uma cachaça. Qualquer cliente que se prezasse, sentir-se-ia até ofendido,  a sua reação imediata seria de rejeição, repúdio, um afastem de mim esse cálice de bebida tão desprezível. Assim, tão avesso à cachaça, o mesmo cliente, entre sorrisos,  aceitaria algumas doses até generosas de outros destilados, desde que fossem importados, como o uísque, a vodca, o gin, a tequila, o rum. Talvez nem atentasse para o fato de que aquelas bebidas, nos países ou regiões de origem,  são consumidas, sem  distinção ,  por pobres e ricos  .  O preconceito contra a cachaça seria, em primeiro  lugar, decorrente da péssima qualidade da ¨pinga¨ que produzíamos, tanto assim, que foi criado um diferencial. Apareceu a  ¨ boa pinga¨,  aquela fabricada com mais cuidado, com técnica, evitando-se o uso de substancias que provocavam a terrível consequência da ressaca, com todas as dores de cabeça imagináveis, e que surgia mesmo quando não havia excessos no consumo da ¨branquinha¨.  A boa  ¨pinga¨,  entre elas as chamadas ¨ cachaça  de cabeço¨,  as primeiras que rolavam no processo de destilação,  passaram a ser disputadas, aparecendo como requintada essência para o prazer de consumidores exigentes. O processo de aperfeiçoamento da cachaça prosseguiu, e o Brasil pode, finalmente, mostrar ao mundo uma bebida de alta qualidade,  comparável aos melhores uisques,  às melhores vodcas.  Na onda da boa imagem que o Brasil vai consolidando pelo mundo a fora a cachaça  ganha espaço. Há marcas vendidas no exterior até por mais de 200 dólares. Os bares e restaurantes parisienses que, desde algum tempo já serviam a ¨caipirinha¨,  renderam-se   à qualidade da nossa  bebida  nacional , a ela acrescentando  o charme e a elegância do champagne,  sugerindo uma dose de ¨champanhirinha¨,  com a sofisticação etílico-gastronômica dos franceses: o  champagne,  a cachaça, e o suco de laranja, preferencialmente sem gelo. O sabor é requintado.  Por esse caminho, com acompanhamentos assim tão qualificados, a nossa cachaça vai invadindo o mundo.
Essa  ¨invasão¨ se tornou possível porque empresários brasileiros começaram a investir na produção de cachaças de alto nível. Minas, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, saíram na frente  .  Sergipe logo os seguiria. Apareceu aqui a Cachaça do Barão que começa a chegar ao mercado externo, agora, o empresário Laurinho Menezes dá um passo ousado em direção às tendências do mercado, passando também a participar da fabricação de cachaças  ¨for export¨, aquelas, com certificado de boa qualidade. Na noite de sexta-feira, no cenário feericamente iluminado  da fazenda Boa Luz, com degustação, boa  comida, show artístico,   centenas de amigos reunidos, Laurinho lançava as suas marcas de boas cachaças: a top de linha Boa Luz, comparável às melhores do ranking, e uma mais popular, a Xingó,  todavia, com aqueles mesmos cuidados de fabricação que afastam a inevitabilidade da ressaca, desde, evidentemente, que não se perca a moderação. A cana vem das terras de massapê da própria Boa Luz, são de uma cêpa  especial ; o alambique  foi montado obedecendo-se às mais detalhadas exigências para que dele saia a melhor ¨água que os passarinhos não bebem¨. Infelizmente, para eles.
 A cachaça Xingó vai ter um segundo lançamento, e o cenário será a grandiosidade do canion  de Xingó, em Canindé do São Francisco. Kaká Andrade, secretário municipal e segundo suplente de senador,  ouvindo o anúncio feito por Laurinho, aprovava, lembrando: ¨Está aí o bom resultado da marca   que o prefeito Orlandinho  consolidou em todo o país ¨. Entre  as centenas de pessoas que degustavam a Boa Luz e a Xingó, estava   Eduardo Amorim, de quem Laurinho é  primeiro suplente. Comedido ao falar,  mais ainda no beber, o médico e senador, com aquela expressão dos  conaisseurs,  dizia: ¨excelente cachaça¨.

OS MERCENÁRIOS SENHORES DA GUERRA


Amanhã, se um grupo armado se insurgir contra o presidente da Venezuela,  Hugo Chavez,  e quiser o apoio militar dos  Estados Unidos, do bloco militar da OTAN, bastará fazer uma boa proposta. Que tal  2 milhões de  barris  de petróleo para dividir com todos, durante algo assim como 5, ou mesmo 10 anos?
 Aparecerão os argumentos de sempre para justificar  a agressão. Hugo Chavez é  uma ameaça à estabilidade do continente, é um ditador que destrói as instituições democráticas da Venezuela, os seus adversários são pessoas comprometidas com a liberdade, os direitos humanos, é preciso então apoiá-los. A Inglaterra, apequenada com Tony Blair, agora com David   Cameron, logo  se apressará em seguir os Estados Unidos, Sarkozy, querendo exibir força e prestigio não hesitará em ir à guerra. A Itália do capo Berlusconi, semifalida, nem precisará pensar duas vezes.
   Ao Caribe chegarão os porta-aviões, os submarinos nucleares. Deles sairão os jatos , os misseis, as aeronaves não tripuladas. As instalações militares de Chavez  serão arrasadas, os rebelados receberão apoio tático para o desimpedido avanço até  Caracas. Preferencialmente, Chavez será morto, um descontrolado ato de vingança dos rebeldes se traduzirá no linchamento que não pôde ser evitado. A  Venezuela estará pronta para retomar o caminho da democracia, ou seja, retornará ao poder a velha carcomida e corrupta   elite dominante. Por séculos, os privilegiados donos da Venezuela enriqueceram com os lucros do petróleo que dividiam com as grandes corporações multinacionais, enquanto    multiplicava-se uma massa esquecida de miseráveis.
 Depois de tudo os  ¨libertadores ¨ apresentarão a conta, e ela terá de ser paga.
O mesmo poderá acontecer em Cuba. Como a ilha não tem petróleo, os rebeldes terão de encontrar uma maneira de pagar aos  mercenários o custo da guerra. Serão escancaradas as fronteiras do país para a entrada dos antigos proxenetas e crupiês que comandavam o bom negócio  do lenocínio, da droga e  da jogatina nos lupanares de  Havana. E tudo acontecerá  em meio às grandes comemorações pela volta da liberdade e da democracia.  Os cubanos deixarão de lado as esperanças nascidas com uma revolução que simplesmente envelheceu, tornou-se até caquética, e assistirão o seu país voltar a ser um enorme cabaré, igualzinho ao que era nos tempos de   outro ditador, o sargento ladrão Fulgêncio Batista.
 Este é o novo cenário cínico- geopolítico  do mundo, depois que os países militarmente poderosos se transformaram em mercenários a soldo de quem eles mesmo identificarem como o lado bom em choque contra a banda podre do mal.
 Tudo começou na Líbia onde estiveram os mercenários ajudando a liquidar o ditador,  aliás covarde, como o outro do Iraque. Os dois se deixaram prender como ratos fugitivos, com medo de acionar um gatilho e morrerem com algum resquício de dignidade. Mas o mundo árabe é demasiadamente complexo. Kadafi, o ditador linchado,  será visto por uma boa parte da população   como mártir. Os mercenários começarão a cobrar a salgada conta. Um parlamentar americano já fez rápidos cálculos iniciais e apresentou uma cifra superior a um bilhão de dólares. França, Inglaterra, Itália, até a quebrada Espanha, também irão querer o seu quinhão.  A guerra   não custará menos de vinte bilhões de dólares aos novos governantes.  Depois do ritual de sangue, da dança festiva em torno de cadáveres, os líbios se verão diante da realidade, do custo da guerra a ser cobrado implacavelmente pelos seus  ¨libertadores¨.  Ai, aquilo poderá virar um   outro  Iraque.

O ÓDIO NO GATILHO OU NO TEXTO DA DENÚNCIA


O  desembargador Luiz Mendonça nem seria chamado  de covarde, omisso,  negligente, se, naqueles dias  difíceis, quando ainda Promotor,  e  teve de tomar decisões que iriam  marcá-lo  talvez por toda a vida, que ameaçariam a paz da sua família, houvesse, somente, pensado  na própria conveniência, na sua tranquilidade pessoal.    Tergiversando, amaciando as acusações,  não deixaria de chegar  ao cargo de procurador de justiça, depois, ao de desembargador. Estaria hoje passeando em mangas de camisa  pelos shoppings,  frequentando placidamente os restaurantes da cidade,  tranquilo em relação à segurança da sua família.
O sentido prático da vida recomendaria que ele colocasse em primeiro lugar os seus próprios interesses, fugisse dos riscos, perfeitamente evitáveis.  Essa é uma atitude  que pode ser aceita, compreendida, mas,  se viesse  a tornar-se habitual entre autoridades, entre aqueles que têm sobre os ombros o peso de fazer cumprir a lei, então,  a insegurança, a impunidade e a ousadia dos criminosos terminariam por  subjugar-nos.
Quando o promotor de justiça Valdir Freitas foi executado por jagunços alugados para a empreitada em Cedro de São João, o Ministério Público se viu desafiado, a cidadania e  as instituições afrontadas. Para lá foi mandado Luiz Mendonça. Ele encontrou uma fórmula didática e muito pessoal para afirmar a autoridade.  Refez,  sozinho, durante quase uma semana o
Mesmo  trajeto às margens da rodovia onde Valdir fora assassinado de forma covarde enquanto fazia o seu cooper  diário. A comunidade logo sentiu que o Ministério Público não se acovardava  e que os matadores seriam punidos.
Depois, veio o episódio de Canindé do São Francisco onde uma quadrilha ousada, tão violenta quanto corrupta, se instalara no poder, atemorizando, assassinando, roubando. Para lá, mais uma vez, foi despachada pelo então Procurador Geral Moacyr Motta uma bateria de promotores, tendo a frente Luiz Mendonça. Em pouco tempo havia presos ou foragidos, a máfia desmantelada com os mandados de prisão sempre expedidos pelo inflexível  juiz Diógenes Barreto.  Alí,  surgiam os  juramentos criminosos de uma vingança que poderia tardar, mas, viria a ser consumada.
Naqueles episódios apareceu o nome  temido do pernambucano Floro Calheiros, trazido a Sergipe pelo então prefeito de Canindé, Genival Galindo, os dois, envolvidos no assalto ao Forum da cidade e roubo das urnas. Floro foi duas vezes preso pela Policia Federal, duas vezes evadiu-se, primeiro, de uma delegacia em Aracaju, depois, de um hospital onde fora condescendentemente  autorizado a ficar, à revelia de Luiz Mendonça, que era o Secretário de Segurança. Surgiram então, produzidas pelo fugitivo, as acusações que agora, depois de morto em tiroteio com a Policia Federal na Bahia, estão  sendo reproduzidas  e enviadas ao Conselho Federal de Justiça. Quando fugitivo pela segunda vez, Floro fez publicar entrevistas em jornais de Aracaju com ameaças diretas ao então desembargador Luiz  Mendonça e à sua família.
A ameaça foi consumada às primeiras horas de uma manhã, quando o desembargador, então presidente do Tribunal Regional Eleitoral dirigia-se ao trabalho .   Seu carro foi emboscado por pistoleiros que dispararam dezenas de tiros, isso, numa das principais artérias da cidade, na hora do transito mais intenso. Luiz escapou milagrosamente, mas, teve de empunhar uma metralhadora quando os bandidos se aproximavam  para terminar a empreitada. Sabe-se agora, pelo depoimento de um deles, preso, que o intuito era por fogo no automóvel, fazer uma imensa  fogueira,  espécie de macabra comemoração da vitória do crime sobre as instituições.  Um policial militar e segurança do desembargador, foi  atingido por uma bala na cabeça. Está até hoje tentando recobrar parte dos movimentos perdidos.
Alguns metros atrás do carro do desembargador rodava um   outro  veiculo chapa preta,  que conduzia sua esposa, a  então procuradora Geral de Justiça, Cristina  da Gama e Silva Foz Mendonça,  indo para o seu trabalho diário.
 Se cometessem um equívoco, os pistoleiros poderiam ter assassinado a  mulher do desembargador, a mãe dos seus filhos.
A ousadia, as características desafiadoras do atentado,  preocuparam e revoltaram o então presidente do   Superior Tribunal Eleitoral, ministro Levandowsky.
O objetivo do crime cinematograficamente  pensado, articulado e cometido, era, não somente a liquidação física do desembargador,  identificado pelo comando do crime organizado como um estratégico inimigo sobre quem teria de ser despejada a vingança implacável, e mais ainda,  uma  sanguinária exibição de poderio, de ousadia, para criar o medo e  subjugar as instituições.
A denúncia que agora é feita contra Luiz Mendonça, de forma tosca, grotesca, sem disfarçar o ódio e o sentimento de vingança, é, por outro meio, a continuação dos mesmos propósitos que geraram o atentado.
Essa inversão de valores, essa subversão de procedimentos, é, não só uma agressão ao magistrado,  muito mais, um acinte, uma ofensa à Justiça, uma afronta ao estilo de vida pacífico, digno e civilizado da gente sergipana.
Luiz Mendonça continua tendo de pagar o preço daquela decisão, daquele   compromisso com a profissão que escolheu, que o obriga, em nome até da própria honra, a não condescender com o crime, a não se omitir, não recuar,  não saber o que é covardia.
Relembramos aqui   outro episódio envolvendo, também,   um representante inflexível do Ministério Publico. Aconteceu no já distante ano de 1960. O promotor público de Aracaju Paulo Costa havia solicitado sua aposentadoria por tempo de serviço. Ia completar 48 anos. Tornara-se promotor substituto aos 20,  ainda estudante em Salvador. Dois anos antes, acontecera um estúpido crime na Barra dos Coqueiros,  quando foi morto a facadas Jose Campos, candidato a prefeito do município. O matador,  Chiquinho, era homem perigoso e protegido pelo chamado Sindicato do Crime, na época muito atuante, muito desafiador. Políticos poderosos o amparavam,  e ele permaneceu solto por muito tempo.  Impune, tinha  um requinte de  maldade ostensiva: gostava de passear todos os dias pela calçada
da casa na praça Olímpío  Campos,  em Aracaju, onde moravam a viúva e as filhas menores da sua vítima.
O júri foi marcado para a Barra dos Coqueiros. Não foram poucas  as ameaças recebidas por Paulo Costa.  Diziam que ele seria morto se atravessasse o rio para ir fazer a acusação. Recebeu conselhos para que, já esperando a aposentadoria, pedisse a sua substituição.   No dia  do jurí  ele apenas colocou no bolso um revolver 32  cano curto e saiu sozinho. Amigos, sem nada dizer-lhe, resolveram também cruzar o rio.  Um deles, o capitão do exército Juca Teófilo ,   ex-combatente   na Itália, tirou da gaveta sua azeitada Colt-45. Colocou-a numa pasta e ficou a acariciá-la durante o tempo em que durou o julgamento. Paulo Costa fez uma dura acusação, conhecia quase todos os pistoleiros que faziam parte da plateia, entre eles alguns policiais, e falava de frente para os que, raivosos, o escutavam. O Juri  absolveu Chiquinho, já estava tudo adredemente  arrumado. O Promotor anunciou na hora que iria recorrer,  fez isso no dia seguinte. Os amigos o salvaram naquela ocasião, mas, ele viria a morrer em janeiro de 61, vitima de um clamoroso erro médico que nunca foi devidamente apurado.
Há momentos assim, quando os homens se vêm diante da opção difícil de preservar a honra arriscando a própria vida. Pena que,  mais de meio século transcorrido, a sociedade não tenha ainda conseguido assegurar aos que combatem o crime, promotores, juízes, policiais, até desembargadores, a tranquilidade para que possam agir sem medo das retaliações.  Vinganças, quando não são feitas com o cano das armas, podem acontecer, também, através do rancor de denuncias que extravasam o mesmo ódio que antes acionara  mãos assassinas.